Na minha cabeça o que lembro são memórias diluídas, você caído entre a pia e o fogão, eu tentando aplicar massagem cardíaca e fazendo respiração boca a boca, e, para meu desespero, estou consciente demais para, apesar de seus movimentos involuntários, perceber seus olhos vazios, opacos e distantes, de quem, mesmo com as tentativas minhas e dos médicos do SAMU, já não estava entre nós. Eu soube que tinha te perdido no momento que entrei na cozinha. Os quase quarenta minutos de tentativas minhas e dos paramédicos só prolongaram aquilo que eu soube quando cobri sua boca com a minha para te jogar ar. Você já havia partido. O coração ainda batia, você de alguma forma ainda respirava, mas já não estava mais lá. Você morreu e, de alguma forma ainda é muito difícil verbalizar isto.
A mulher à minha frente percebe que estou longe dali e tenta me trazer de volta à sessão. Não se pode dizer que ela não tenha tentado. Eu acho. Porque na verdade me lembro muito pouco do que conversamos nesta primeira visita. Ela, enquanto eu enxugava as lágrimas, dizia que é muito mais difícil viver a perda no mesmo local onde vivemos a vida toda. Descobriu a América, ela, tadinha. Sem desmerecer seu empenho, só eu sei o que tem sido voltar todo final de tarde para nosso apartamento, sentindo como se você ainda estivesse sentado onde sentou-se por trinta e sete anos, seu lugar no sofá, seu lugar à mesa onde fazia as refeições, seu lugar onde dormia, por onde caminhava, à mesa do computador onde você trabalhava e onde hoje preciso me sentar para fazer o trabalho que era seu. Verdade seja dita, , não fosse sua rigorosa organização eu jamais estaria ocupando sua função como síndica. Há tantas pastas caprichosamente arquivadas no nosso computador que me espanto de você ter arquivado tudo, previsto tudo, deixado para mim um trabalho quase pronto de como administrar nosso prédio. Santa organização!
Eu desperto de meus devaneios quando a mulher à minha frente repete a pergunta, agora em um tom de voz mais elevado: "- Você sabia, soube, por três anos, que ele estava doente e era mais velho que você, não sabia? Não pensava nisto?"
Eu quis pular no pescoço da moça, adornado por alguma coisa dourada que me chamava a atenção, mas não achei que ela me entenderia. Levei mais de um minuto para responder sua pergunta. Sim, é evidente que eu sabia. O que não queria dizer que eu gostasse da possibilidade. Sempre dizia a ele que iríamos juntos, que não suportaria sua perda e ele ria de mim, me lembrando em sua sensatez que na vida não fazemos o que queremos , mas o quer era para ser. Quando ela mencionou nossa diferença de quase dezesseis anos de idade, viajei ao passado, uma viagem agridoce, onde me lembrava de nossa paixão aterradora e a reação das pessoas ao nosso redor. Meu pai me disse que estaria me deserdando ( como se isso mudasse alguma coisa - era fazer as coisas da forma tradicional para dar satisfações aos seus parentes e amigos ou aceitar que iríamos juntar nossas escovas de dente. Muito rapidamente ele percebeu que não estávamos brincando. Passados alguns anos, meu pai passou a nutrir por meu marido um carinho de pai para filho). Por outro lado me doía pensar que alguns parentes dele me viam como uma espécie de golpista, que só queria arrancar dele o que ele nem tinha e que iria lhe meter chifres na primeira oportunidade. Eu me aborrecia e ele dizia para não ligar, que um dia todos os seus parentes me veriam com outros olhos. Casei-me, com dezenas de pessoas apostando se meu casamento duraria um semestre, um ano ou cinco. Entre conhece-lo e casar-me foram quarenta e um anos. Nem o bendito padre de minha paróquia quis abençoar nossas alianças. Por ser desquitado, o padre, que deve estar mordendo a língua até hoje, recusou-se em abençoar nossas alianças e disse que nossa união e todos os meus herdeiros seriam amaldiçoados. Para agradar gregos, e troianos de ambos os lados da família, casamos em uma Igreja Anglicana, com um padre de uma destas igrejas que não perguntam nada se você pagar o suficiente, usei branco, véu, grinalda, joguei o buquê para as amigas, meu pai bancou uma festa que não podia pagar, para mostrar aos seus amigos que a primeira filha tinha se casado conforme a tradição e, no fim, depois de tantas concessões de ambos os lados, só nos importava o quanto nos amávamos um ao outro que quase doía, de tão real este amor.
Foi então, ainda entre lágrimas, que me lembrei o quanto a morte dele me doía em meu corpo também, uma dor física, uma dor no peito que eu só sabia explicar como a dor de quando me apaixonei e que eu nunca consegui explicar, menos ainda agora, para ninguém. Me dói, me formiga os braços ao entrar na nossa cozinha, não consigo pisar aonde ele caiu e morreu. Me sinto como se estivesse pisando em cima dele. Não consigo dormir na nossa cama, porque por quarenta anos minha mão pousava sobre sua perna, em um gesto de carinho, que depois de sua doença, virou um gesto para lhe dizer que eu estava lá, que ele não precisava se preocupar.
Hoje durmo em uma cama de solteiro encostada na parede, e à noite ainda me pego procurando a perna dele para saber se está tudo bem. Se ouço um barulho em casa pergunto se ele precisa de mim, se troco de canal na TV e o som aumenta, eu corro para abaixar, porque o som alto pode acordá-lo. É tudo como se ele estivesse ainda aqui.
A sessão está terminando e eu a ouço dizer que eu devia externar meus pensamentos em um diário " - escrever sempre ajuda!"
Cá estou eu escrevendo sobre meus sentimentos e compartilhando com quase zero pessoas. Não que me faltem amigos. Muito pelo contrário, eles são muitos e têm me mantido em pé durante mais de três anos, das mais diversas maneiras. São minha rede de apoio e proteção. Meus amigos, minha família e a filha mais velha do meu Afonso, com quem me dou muito bem, têm me dado toda a força que eu preciso e ainda mais. E meu filho! O que dizer do meu filho, que nunca me falta, mesmo quando a distância se torna um empecilho!
Mas, na verdade, ninguém quer ler sobre dor do outro. Cada um tem sua própria dor, cada um carrega seu próprio fardo. Então, escrevo e jogo no meu bom e velho blog, para quem quiser perder cinco ou dez minutos para dar uma lida. Talvez alguém se identifique, talvez ajude alguém que está caminhando sobre esta mesma trilha.
A propósito, já foram duas sessões. Não sou burra, mesmo tendo feito psicologia, sei que santo de casa não faz milagre e que deverão ser muitas sessões até que eu não precise mais de lenços de papel. Mas, apesar de toda a dor, de todas as dificuldades, sei que a terapeuta tem razão. Tudo acaba. Até a dor física que hoje é palpável um dia irá passar e se transformar apenas em uma saudade boa das loucuras que cometemos em nome do amor. Nós tivemos uma vida incrível e apesar de alguns dias brigarmos feito cão e gato, não sabíamos viver um sem o outro. Houve cumplicidade, houve compreensão, houve apoio, houve pic nic em cima de formigueiro, houve champanhe com sanduiche de mortadela, houve sexo como ninguém jamais fez e como os jovens de hoje jamais saberão como é ( palavras dele, mas que eu endosso), houve acalanto, houve dança na sala ao som de Emílio Santiago, bossa nova e Johnny Mathis, houve cartarmos juntos Guilherme Arantes e seu sol num despertar, brincando com a brisa, pois fomos mais românticos que a lua cheia!... houve segurada de barra contando moedas para comprar leite para o Bruno, houve desemprego, um enfarte aos quarenta e um anos, houve dias em que trabalhei vinte e tantas horas seguidas e você segurou lindamente a situação, nosso casamento teve de tudo um pouco e além.
Só não me peça para aceitar você ir embora sem mim. Não era o nosso combinado e isso foi golpe baixo. E agora me resta aceitar existir sem você ai meu lado. Isto me soa tão injusto para um casal que passou tanta coisa junto! Você até ensaiou ir sem mim antes: ter um enfarto quando Bruno tinha nove meses não teve graça, nem ficar dez dias sentada nas escadas que davam acesso à UTI.do UNICOR. Tampouco quase morrer afogado para salvar a bola do Bruno em Meaípe. Ou cair na cachoeira e perder os óculos e me matar de susto. Mas, o que eu sempre te dizia: eu fico péssima de viúva, me recuso a ser uma. Por isto, hoje sou apenas uma mulher casada, cujo marido impaciente resolver mudar-se na minha frente. Você sempre fez troça de mim por causa destas brincadeiras.
Vou tentar continuar escrevendo minha lições de casa para a terapeuta. Não, ela não quer ler. Acho que ninguém quer, mas eu não me importo. Vou jogar no meu blog que, de forma geral, quase ninguém lê, sim, aquele blog onde segundo você eu postava as nossas indecências em forma de .fec... fic...você nunca acertava o nome. Ah, você era tão à frente do seu tempo em algumas coisas, mas tão antiquados para outras.. mas, sempre te compreendi, Era um pouco demais para alguém criado na década de quarenta.
Continuo chorando, um choro onde os condôminos não enxergam as lágrimas, onde os amigos acham que estou melhorando e os parentes tem certeza de que é uma questão de tempo a dor passar. Minha doença avança calada e sem fazer muito alarde, mas logo não será mais tão fácil pintar ou me locomover e se houver justiça divina neste mundo, neste dia, ao invés de me render às fraldas ou à cadeira de rodas, nós tomaremos um atalho e você virá me buscar e nos encontraremos novamente.
Te amo incondicionalmente como da primeira vez que te vi, como da última vez que te vi!
Tua sempre e sempre,
Dé