Eu
moro há 31 anos no mesmo edifício. Nele, estaciono meu carro
na mesma vaga, pelo mesmo tempo. Do meu carro de hoje ou da antiga
perua escort sw, ao estacionar e descer do carro a mesma visão: as
diversas varandas dos apartamentos de fundos do Julieta. Em uma
delas, frequentemente a mesma visão: a de um sorriso sempre aberto e
sincero. Sempre um bom dia! Uma boa tarde! Muitas vezes uma boa
noite!
De
quando eu estava grávida, vinham desta varanda, conselhos sobre tomar sol, oferecimentos de ajuda caso se fizesse necessário, desejos de
um bom parto em São Paulo. Já com o Bruno nascido e de volta à Vitória, adorava encantar-se com ele (como se ninguém soubesse o
quanto ela amava crianças). Foram tantos encantos, chamegos com meu filho e os outros bebes do edifício, de uma geração que foi se formando
para encantá-la: Flávia, Wantuil, Bruno, Lorena, Guilherme, Victor,
Aline, Júlio (que depois de tantos anos acabou se tornando seu
médico de imagens), Júnia, Maria Victória, Caio, Fabiana, Fabíola,
Fred, Luíza, Bianca, Gustavo e tantas outras crianças cujo nome vou
esquecer. E não sei se eles cresceram com ela e seu “Mozão” ou
se ela é que cresceu com eles. Ela sempre foi uma espécie de imã
para atrair crianças.
O
Bruno foi para a escola e eu abri meu buffet. Eu já não tinha tempo
para curtir toda a vizinhança, mas ao descer do meu carro, daquela
varanda não cessavam os avisos para que eu não trabalhasse demais,
de que as caixas estavam muito pesadas para minha coluna e, a parte
mais divertida era sempre ela me perguntando com cara de menina
levada se tinha sobrado salgadinhos e brigadeiros de fim de festa,
sempre com a desculpa de que eram para o Mozão. E, inevitavelmente
eu fazia uma parada estratégica no primeiro andar para deixar um
pratinho.. e seus olhos brilhavam: até aí ela era mais criança,
como gostava de um brigadeiro, de um pedaço de bolo. Daquela varanda
também vieram alguns dos melhores elogios ao meu menino, sobre como
ele educado, estudioso, bem comportado.
Mas,
aí a vida, sempre ela, acontece e nos desvia das coisas que mais
gostamos de fazer. O buffet foi crescendo, os trabalhos em finais de
semana iam até a madrugada, eu só entrava em casa correndo e saia
mais correndo ainda. As festinhas nas escolas de segunda a sexta e o
fim de semana corrido, só me permitiam tempo para meu filho e meu
marido. E assim, descuidando de quem cuidava de mim, nossos encontros
eram apenas para deixar o salgado ou o bolo com ela, às vezes dentro
do elevador. Não me pude permitir viver muita coisa ao seu lado até
que seu Mozão já estivesse muito doente, e nem saber que ela sofria
calada sua doença para que seu grande amor se fosse, sem o
sofrimento de vê-la doente também. Que outra mulher calaria seu
câncer por tantos meses, só para se dedicar integralmente ao
marido, por quem tinha adoração, e que já não guardava esperanças
de recuperação? Somente a dona daquela varanda…
Foi
somente aós sua cirurgia que voltamos a nos aproximar. Eu fechei meu
buffet e passei a trabalhar em casa com pintura de enxovais. Meu
tempo passou a ser mais flexível e ela adorava ver meu filho subindo
ou descendo o elevador e perguntar sobre ele, saber de sua banda,
ficar louca com o cabelo comprido dele, vê-lo ir ao primeiro
estágio, ao primeiro emprego.
E
foi sua doença, a tristeza do luto, as ocupações de meu filho e as
minhas pinturas que me aproximaram novamente da dona daquela varanda.
Agora eu podia acompanhá-la mais para um café e um pedaço de bolo.
E quando a doença e a quimio voltaram, tive a sorte de poder estar
ao seu lado. Eu digo sorte, porque eu aprendi mais com ela nestes
últimos seis ou sete anos do que em boa parte da vida.
Ela
ia para as consultas, os exames, as químios, com o mesmo sorriso no
rosto com que ia comigo tomar café no Shopping Jardins ou Centro da
Praia e não perdoava o fato de eu convidá-la para um café e tomar
água ou suco. Eu era a sua amiga de ir tomar café que não tomava
café. Ela ria com isto. E era nestas horas, ou nas que eu ia em sua
casa, que eu ficava ouvindo suas inúmeras histórias sobre sua
família, seus pais, seus irmãos, a casa em Milho Verde, a afilhada
do coração, os seus tempos de banco, de fazer hora extra sem
receber para ajudar uma colega, de adorar esparramar brinquedos no
chão para brincar com os netos das amigas. Gostava de contar também
sobre quando fez psicologia, do que aprendeu, de como era ser a mais
velha da turma. Ainda queria ficar boa de vez para trabalhar como
voluntária, onde dela precisassem.
A
dona desta varanda falava de tudo e fazia tudo com intensidade, com
alegria, com energia. Mesmo diante de resultados de exames nada
animadores, ela levava em seu coração a certeza de que era só mais
uma fase a ser superada. Tinha uma fé inabalável e uma vontade de
viver inacreditável. E se eu fizesse cara de preocupada, tinha a
cara de pau de me chantagear: se for para se preocupar não deixo
você ir mais ao médico comigo! Não te conto mais nada!!
A
dona daquela varanda que eu vejo logo que desço do carro dizia que
queria morrer andando na rua. Caminhando no sol, carregando algum
pacotinho de supermercado, de preferência com alguma boa oferta
dentro dele. Como uma atriz a morrer no palco atuando. Mas, a
pandemia não deixou.
A
varanda ao lado da sua, pertencente a outra grande amiga por muitos
anos, está ocupada a pouco tempo por outra moça que nós também
aprendemos a amar. Gentil, amiga, atenciosa e linda, foram suas
primeiras palavras para descrever a nova vizinha sempre pronta
ajudá-la se fosse necessário. E então, esta moça se casou. Do
começo deste ano para cá, a dona da varanda tornou-se ainda mais fã
de sua varanda ao lado. A moça se casou e trouxe para o andar o
convívio com um jovem alegre, solícito, simpático e músico.
Este
rapaz fez da dona da varanda à direita a mulher mais feliz e
apaixonada e da dona da varanda à esquerda uma nova mãe, como ele
gostava de chamá-la Adorava cozinhar e levar para ela “um
tantinho” para ela experimentar. Uma carninha, uma polenta, sempre
um mimo e um largo sorriso, tentando poupar qualquer esforço
desnecessário vindo da nova “mãe”. Fez até uma serenata para
ela, que presa em casa pela pandemia, ficou encantada com o gesto,
que encantou a muitos outros moradores também, isolados neste
momento.
E
assim, como um furacão, o dono do coração da esposa e do coração
da mãe emprestada acabou ganhando também meu coração. Nos últimos
meses, ao estacionar meu velho carro e dele descer, eu já não tinha
apenas um aceno da varanda, tinha dois. Neste tão pouco tempo, não
raras vezes, me vendo abrir o porta-malas cheio de compras do
mercado, o rapaz descia correndo para me ajudar a carregar os
embrulhos até o elevador ou até a porta de casa. E aproveitava para
me perguntar como estava a saúde da vizinha de varanda e se podia
ajudar em qualquer outra coisa ou apenas dizer como estava
apaixonado, como gostava do prédio, como era bacana o trabalho do
meu marido como síndico, como os funcionários daqui eram “gente
boa demais” e como a vizinhança aqui era legal.
Foi
em uma sexta feira que levei a minha amiga ao pronto socorro. Não sem antes ela me apontar na mesa de entrada da casa, que havia acendido uma vela pelo meu filho por causa da pandemia no Pará. No hospital, depois dos exames, deixou comigo suas alianças e eu disse que ficariam bem guardadas, esperando por
ela voltar. A última coisa que disse para ela, antes de subir de elevador
para a UTI cardiológica foi: Você vai ficar bem! Te amo! Te vejo
daqui a pouco e vamos sair para tomar um café! Ela já respirava com
muita dificuldade, mas fez o enfermeiro parar de girar a maca para
poder olhar para mim e me dizer: Claro! Pode me esperar! Ela mal podia falar..
Só
pude vê-la depois disso por chamada de vídeo, mas ela talvez já
não me ouvisse, nem soubesse o tanto de amigos que tinha rezando por
ela. E, quase uma semana depois, só pude me despedir dela por uns
poucos minutos, com uns poucos amigos e parte da família, o que foi para mim, uma destas rasteiras da vida. Não bastasse perdê-la, ainda tínhamos que
fazer sua despedida sem o tanto de amigos à sua volta, logo ela, que
conhecia e era querida por tantos…
Quis
o destino que a dona de um largo sorriso, alegria contagiante e um coração cheio de uma bondade e caridade imensas de uma
varanda e o jovem esfuziante e gentil da varanda vizinha deixassem a
todos nós no mesmo dia, tornando insuportável a dor de todos os que
conheciam, a um, ao outro ou ambos.
Passaram-se
uns poucos dias e, com ou sem pandemia, alguns problemas ainda me
obrigam a ir para a rua. Mas, dias vão se tornar semanas, as
semanas, meses e outras estações irão chegar. Uma certeza fica
para mim: eu nunca mais vou descer do meu carro e olhar para as duas
varandas com a mesma alegria no coração. Mas, vou esperar que tanta
tristeza se torne uma saudade boa, cheia de recordações incríveis e bons exemplos destas duas pessoas e sempre ser grata por ter tido a honra de cruzar seus caminhos....