Quando eu comecei a sair da infância para a adolescência me encantei com os filmes americanos, vistos no cinema ou na tv. Para mim, aquele lugar era um paraíso, eu achava que os músicos tocavam nas ruas, que as pessoas dançavam alegremente em todos os cantos, inclusive debaixo de chuva. O mundo que o cinema americano construiu na minha cabeça era mágico .
Obviamente que, ao adquirir maturidade, comecei a entender que a coisa não era beeeem assim. E filmes como Todos os Homens do Presidente, Questão de Honra, Nascido em 4 de Julho, Lincoln, entre muitos outros, me fizeram entender o orgulho que o americano, apesar de suas mazelas, tinha de seu país. Um lugar com apenas dois partidos, cuja corrupção era investigada e punida, onde a liberdade de expressão era real, onde o povo podia escolher livremente seus representantes. Pois é, com mais maturidade ainda e muita leitura, compreendi que também não é beeeem assim.
No Brasil, nos últimos anos, tão malhado pelas urnas eletrônicas, você aperta seus números e elege seus candidatos ( aviso aos que não me conhecem, sou avessa a teorias da conspiração, leia- se fraude em urnas). Nos EUA, nao é assim que funciona.
Em 2016, por exemplo, Hillary Clinton ganhou as eleições no número de votos populares. Ganhou, mas não levou. Porque, na prática, os votos vão para um Colégio Eleitoral formado por outras pessoas que vão decidir Estado por Estado suas preferências. Por isto é mais importante para eles ganharem em muitos estados, mesmo com um número menor de votos.
Podem dizer o que quiser que não vão me convencer de que o voto de lá é mais democrático que o daqui.
Dito isto, chegamos ao segundo mandato do Presidente Donald Trump. Na primeira eleição ele perdeu em votos, mas tornou-se presidente porque ganhou na maioria dos Estados, mesmo com menos votos individuais. No primeiro mandato já dava para perceber que espécie de administrador ele se configurava. Um representante da extrema direita, avesso a todos os avanços que a humanidade necessita. Contra a pauta ecológica, a favor de uma energia suja que está destruindo o mundo, contra os imigrantes, as minorias, os homossexuais, e a favor de uma agenda altamente protecionista.
Protagonizando um dos episódios mais deprimentes da história recente americana, recusou-se a aceitar a vitória de Joe Biden, pediu inúmeras recontagens de votos e insuflou parte do seu eleitorado radical a uma invasão ao Capitólio.
E agora, Donald Trump, após um fraco governo de Joe Biden, retorna à cadeira da presidência americana, desta vez ganhando de lavada, com enorme apoio popular, visto que fez promessas para seu eleitorado que foram um grande fracasso no governo anterior, como os problemas de imigração e os investimentos milionários em agendas ecológicas, por exemplo.
Um Donald Trump, contaminado por um discurso anti tudo o que é razoável, como um sistema adequado de saúde popular, anti vacinas, anti proteção climática, anti democracia ( ele proibiu a participação de jornalistas de alguns veículos de imprensa de participarem de entrevistas porque se recusam ao óbvio - renomear o Canal do Panamá sem respaldo de qualquer entidade), anti imigrantes, inclusive os que já haviam recebido a promessa do Green Card no governo anterior, anti as manifestações estudantis a favor de Gaza, entre outras bizarrices, como proibir chuveiros com timer, porque " ele adora lavar seus cabelos sem pressa".
Além de desmontar sistemas que comprovadamente funcionam ( hoje soubemos que o segundo óbito de sarampo do país foi de uma criança não vacinada - como pode isso, meu Deus!), Donald Trump ambiciona destruir a reputação dos EUA como maior país democrata do mundo, perdido na mediocridade do seu ego e na não confiabilidade de sua palavra. Não acho que ele ligue muito para o que seus assessores e Secretários lhe orientem. Ele está ensandecido. Respaldado pela ampla votação, vinda muito de americanos meio sem opções, Trump um dia levantou-se achando Deus, prevendo que todos os paises do mundo iriam se curvar à sua vontade, sem não, nem porquê. " Vou anexar a Groelândia, o Canadá, vou mudar o nome do canal do Panamá, vou vender imigrantes venezuelanos para El Salvador, sejam bandidos ou não, qualquer engano não é problema meu. E vou taxar todo o mundo. A América grande outra vez! Danem- se todos no resto do planeta!
O problema de egos inflados é que eles não tem racionalidade suficiente para perceber seus erros. Quem não tem bala na agulha vai sim, lamber suas botas e negociar até os pêlos da sobrancelha. Mas, tem muito país com bala na agulha para dizer não é bem assim. E com este discurso, há dois meses Trump morde e assopra, impondo taxas e recuando, fazendo com que os mercados enlouqueçam e que todo mundo pague o pato. Com Trump no comando é como dirigir na neblina, você nunca sabe o que está por vir à sua frente e isso desmonta a enorme confiabilidade que sempre foi característica do país que governa.
Em teoria, isto não deveria afetar a nós, réles mortais, como dizia meu antigo chefe. Mas, afeta. Ele acorda, diz que vai taxar a China em cento e tantos por cento e o mercado de ações derrete. Tá, e daí? Daí que o dólar sobe mais do que o seu já alto preço e o agro, assim como outras empresas, só trabalham com dólar. Quando o dólar sobe, sua gasolina sobe, seu pão sobe, sua carne sobe. Porque o mercado compra e vende pela base do dólar. Você vai pagar seu pão mais caro porque a farinha que o Brasil compra é paga em dólar. É mais complexo que isto, mas a explicação é suficiente para você entender porque Trump está enlouquecendo o mundo todo.
Ah, mas e quem tem bala na agulha? Quem tem bala na agulha faz o que a China está fazendo, não voltando atrás nas retaliações, mantendo-se firme , sem negociações.
A equipe de Trump tem se apressado em afirmar que este vai e vem nas tarifas estava previsto e é estratégico. Pessoalmente, acho que a equipe está desesperada em apagar incêndios. Trump já disse que esperava retorno para negociação com a China até x horas de tal dia, depois disse que era a hora de passar a perna no adversário político e agora disse que ele e Xi Jinping são amigos e vão entrar em um acordo. Ou seja, qualquer bom entendedor sabe que ele está atirando para todos os lados. Seu ego não lhe permite admitir que errou e encontrou alguém que vai pagar para ver, sem negociação, ou, pelo menos, não sem fazê-lo suar bastante.
Hoje Trump anunciou que estuda suspender a distribuição cinematográfica para países que não se encaixem nos seus programas tarifários. A despeito de esquecer que um aumento inadequado de tarifas pode encarecer a vida do americano ( apenas a construção de um carro americano pode levar peças de até oito países, segundo li), Trump encaminha seu país para uma enorme recessão, uma quantidade significativa de desempregos e até os bilionários que apoiaram sua candidatura, como Elon Musk, imploram para que ele volte atrás na revisão tarifária. A globalização é um efeito sem volta. Além do mais, a enorme massa de mão de obra braçal ( para fábricas, setor hoteleiro, setor de restaurantes, entre inúmeros outros), sempre foi sustentada pelo povo que ele está mandando embora do seu país: imigrantes, na sua maioria latino americanos e asiáticos, gente acostumada a pegar no pesado dois e até três turnos por dia.
Não sei o que vai acontecer quando o americano médio tiver que suspender o consumo de morangos, abacates e melões que vem do México, ou do suco de laranja que vem da terra Brasilis. Não sei se vai prevalecer o bom senso ou o inflado ego do Presidente americano, mas sei que Trump conseguiu amedrontar as universidades ( berço das melhores mentes e grandes discussões) as grandes empresas de tecnologia, empresas de jornalismo, tudo na base da falta de incentivo econômico . Resta saber por quanto tempo estas instituições se recolherão por medo de represálias, por quanto tempo o povo americano vai engolir a recessão e se os demais países irão se reinventar em novas parcerias econômicas. O baralho não mudou suas cartas, mas os jogadores poderão dispor de suas cartas de uma forma que os americanos podem não gostar.
Quanto a suspensão das obras americanas ( filmes, séries..), se vier, vou lamentar por uma ou outra obra, mas no geral não me fará muita diferença. Porque faz muito tempo que entendi que as orquestras nao tocam nas ruas, as pessoas não dançam nas calçadas e que presidentes acusados de assédio, corrupção e falta de responsabilidade dirigem um país que um dia admirei por uma confiabilidade que hoje já não existe mais.
Observação: a despeito de ter uma opinião política diferente da de Trump, minha crítica não vai na direção apenas na divergência de valores, mas, principalmente na discordância da condução do processo. Discordo enormemente de pessoas com opiniões radicais de direita, o que não significa não respeitar o direito a tais opiniões.