Leio muito desde sempre. Aos doze anos já era rato de
biblioteca, primeiro da biblioteca regional da Vila Prudente, depois da regional
da Móoca, ambas na cidade de São Paulo. Mais tarde entrei para o Clube do
Livro, e assim tem sido durante minha vida toda. Foram nas mágicas páginas dos
livros mais diversos que sempre viajei para o passado, para o futuro, para o
sertão nordestino ou para a Europa medieval. Em brochura ou volume encadernado
conheci a poesia de Drummond, embarquei em um trem para o Expresso do Oriente, chorei
a Morte e Vida Severina. Ler é sempre prazeroso. Mais ainda se for um bom
livro.
O que me leva a Lembranças de Uma Savana escrito por Caio Vieira Reis
de Camargo ( Editora Multifoco - RJ). Não conheço o autor pessoalmente, mas tive o prazer de trocar
informações e comentários com ele diversas vezes em uma comunidade do Orkut em
que participo ativamente. Ao longo destes três anos e pouco, tive o privilégio
de encontrar alguém que, como eu, semanalmente deixava na comunidade suas
impressões gerais sobre o teor e a realização de episódios de uma série
policial. A maioria das pessoas que participam destas comunidades deixam
observações básicas, contendo apenas a sua impressão pessoal. Me chamava a
atenção o fato de Caio sempre escrever um texto bem completo, cheio de
observações pontuais e relevantes, normalmente muito semelhante ao que eu
pensava ou, eventualmente, escreveria também.
Com o passar do tempo, ler seus comentários passou a ser
delicioso ( obviamente ler todos os comentários sempre é muito gostoso, pois é
uma forma de observar vários pontos de vista acerca de um assunto, mas não
posso negar que seus comentários estão sempre entre os mais esperados por mim).
Dito isto, posso dizer que quando soube que ele houvera escrito um livro, fiquei
muito curiosa e, de certa forma, tinha certeza de que gostaria da obra.
O livro tem dois momentos muito distintos para mim. O
primeiro, durante a apresentação do personagem principal, por motivos pessoais –
pois nasci e vivi por 26 anos em São Paulo, cidade que ele usa como cenário
inicial para sua estória – levou-me um pouco de volta à minha juventude, à época
em que eu mesma cursava faculdade nesta cidade, e vivi um pouco desta estória
também. O segundo, claramente fictício, é o momento em que decorre a maior
parte da trama e julgo, tenha sido o mais difícil de escrever.
A estória gira basicamente em torno de um jovem que deixa o
conforto do lar, da família e a segurança de seu emprego para viver durante
trinta dias uma experiência quase surreal, em um país desconhecido para ele,
com uma cultura avessa à que foi criado, em meio a uma guerra civil sangrenta e injusta e ele, em meio ao caos que
se forma é obrigado a tomar uma decisão que mudará sua vida para sempre. O
autor permite-se do início ao fim construir personagens periféricos ricos em
detalhes, o que torna a leitura bastante interessante, mesmo antes de atingir
seu ápice. Gosto de livros ricos em informações, eles me dão elementos
suficientes para fazer-me embarcar de corpo e alma na aventura proposta. O jovem
professor universitário de língua e história grega, apegado à família e às suas
obrigações familiares se dispõe a representar a universidade em que ministra
aulas em um projeto humanitário promovido pela ONU em uma comunidade do Sudão
como suplente e acaba de última hora sendo convocado para viajar, uma vez que o
professor titular adoece.
Antes mesmo de viajar, o autor já nos fornece uma gama de personagens bem descritos, que embora apareçam pouco ou quase nada, ajudam a compor o dia a dia do personagem principal.
No entanto, é no convívio com outros voluntários de vários países já no Sudão que a trama fica mais interessante. Para leitores que gostam de ir direto ao assunto não recomendo a leitura. A trama envolve inúmeros personagens detalhadamente construídos e explora ao máximo as relações pessoais do elemento principal com seus coadjuvantes. O professor, que viaja ao Sudão com a missão de dar aulas, envolve-se amplamente com um grupo de quatorze crianças que o farão questionar-se sobre quase todas as suas convicções. A narrativa acerca destas atividades com seus pequenos alunos é ao mesmo tempo cativante e chocante, pois traz o melhor dos corações infantis unido à crueldade a que estão expostas.
Excelente também é a dinâmica estabelecida pelo médico e a
enfermeira do projeto com o professor. Bryan O’Hara, o médico irlandês faz um
excelente contraponto à timidez do contido Gabriel, nosso herói na estória.
Companheiros de dormitório, Bryan trará no decorrer dos capítulos um pouco de
humor e leveza para o árduo tema tratado. O entrosamento dos dois voluntários vai
se sedimentando aos poucos, visto que são expostos a situações assustadoras e
isso só os fará mais fortes. Alice por sua vez, encarrega-se do lado suave e
quase romântico, tornando o triângulo ( não amoroso) ainda mais interessante.
Sobre as milícias e grupos separatistas eu imagino que a
pesquisa tenha sido intensa, pois traz um relato desta espécie de "limpeza étnica" que acontece já há tempos e seus
extermínios vergonhosos em Darfur e região( também no Sudão), onde milhares de
vidas já foram ceifadas em nome da raça ou da religião. Obviamente que existem as
licenças poéticas necessárias para tornar o enredo e o desfecho mais
interessantes, mas o que importa mesmo é que, durante a leitura me vi envolvida
pelas crianças e torcendo por um desfecho feliz. Claro que em se tratando do
tema abordado seria hipocrisia demais um final feliz por completo e senti um nó
na garganta com o desenlace de estórias como a de Chuki, entre outros
personagens, mas o autor encontra uma solução emocionante, mesmo que nem tão
crível, para deixar em nossos corações plantada uma semente de esperança:
apesar dos pesares, nem tudo está perdido.
É difícil escrever sobre um livro sem acabar fazendo
comentários que tirarão o prazer da surpresa de quem lê o que escrevo. Pessoalmente,
com os livros, ao contrário do que acontece com as séries que acompanho, não
gosto de muita informação. Mas posso afirmar que é um livro muito interessante, que
enfatiza o quão longe de conhecer a realidade mundial a maioria das pessoas
está ( ler nos jornais sobre a miséria e os conflitos na África está longe de
nos dar a dimensão exata do que isto significa) e que deixa clara a bagagem emocional
que uma pessoa adquire quando enfrenta uma situação destas de perto. É um livro
de ficção, mas nada distante de uma realidade que todos sabemos existir. O
grande problema é que na maioria das vezes nós nos sentimos comovidos e
incomodados pelos quatro ou cinco minutos que dura a notícia na televisão e
seguimos em frente, para lamentarmos a notícia local, a inflação ou o resultado
do jogo do nosso time favorito. Visto desta forma, o livro presta uma enorme
homenagem às pessoas que abrem mão de seu conforto, suas vidas pessoais e
outros bens para ajudar o próximo, para levar a quem precisa, instrução, saúde,
nutrição ou mesmo consolo para quem perdeu tudo. No livro o personagem é um
jovem universitário, mas sabemos do belo trabalho que é feito pelos Médicos Sem
Fronteiras e outras organizações não governamentais que atuam de forma
parecida.
Ao autor, a quem considero um amigo, peço que releve meu jeito meio informal de relatar minha experiência lendo sua obra, pois estou muito longe de ter conhecimento acadêmico para algo mais elaborado e deixo meu incentivo para que continue nos contando
belas e boas estórias, pois você é ainda muito jovem, tem muito o que aprender
e ensinar. Fico no aguardo do próximo livro,
da próxima dedicatória e de um próximo Abayomi para ganhar meu coração!
Um grande abraço,
Débora
Já fiquei com vontade de ler também, ainda mais eu que amo a África.
ResponderExcluirBjs