“ A Verdade É Que Eles Simplesmente
Não Gostam de Nós.” – (Tommy Boatwright )
( O texto abaixo
contém spoilers)
Eu tinha vinte e três anos quando eu soube chocada em 1985
da morte de Rock Hudson, meu ídolo de filmes como Assim Caminha A Humanidade,
Palavras ao Vento, Tudo O Que O Céu Permite e Confissões À Meia Noite, entre
outros filmes de enorme sucesso do astro hollywoodiano ( confesso, naquela
época eu já matava aulas da faculdade para assistir os clássicos nos chamados
cineclubes de São Paulo) e foi a primeira vez que ouvi a palavra AIDS proferida
dentro de minha casa ( o ator foi uma das primeiras celebridades a assumir ter
a doença e os comentários sobre sua homossexualidade não demoraram a acompanhar
a notícia de seu falecimento). Lembro-me das recomendações sombrias para não
usar talheres em lugares públicos, de não encostar em pessoas cuja opção sexual eu não conhece claramente, evitar abraçar e
beijar pessoas, mesmo amigas, em uma festa ou no trabalho. Um clima de pânico
se instaurou naquela época. Lamentavelmente perdi um colega de faculdade dois
anos depois, vitimado pela mesma doença.
Talvez por este motivo, The Normal Heart, telefilme do canal
HBO, escrito por Larry Kramer, adaptado de sua autobiográfica peça homônima e
dirigido por Ryan Murphy tenha me tocado de forma excepcional. O telefilme vai
além de um retrato de sua época, explorando os primeiros casos de uma doença
que por falta de nome melhor era conhecida como o câncer dos homossexuais.
Trata-se acima de tudo de uma estória de amor ou, na pior das hipóteses, da
falta dele. Amor conjugal, amor pelo
próximo, amor por si próprio e a falta de amor pelo ser humano.
Mark Ruffalo interpreta Ned Weeks, um jornalista que no
surgimento da “doença que vitimava homossexuais e não tinha nome” toma para si
a tarefa de encontrar uma forma de dar visibilidade à situação. Cansado de
testemunhar a omissão dos órgãos públicos de saúde frente a tantos óbitos, ele
irá em sua jornada conhecer duas pessoas que mudarão a sua vida: a dra. Emma
Brookner ( Júlia Roberts em uma atuação
surpreendente) e o jornalista do Times, Félix Turner ( Matt Bomer), por quem
irá se apaixonar irremediavelmente. Buscando ajuda entre amigos, influentes ou
não, ele acaba por fundar a organização de nome Gay
Men’s Health Crisis , com o objetivo de angariar fundos para pesquisas e
auxiliar de várias formas os atingidos pela doença, além de buscar atenção das
autoridades. Dado seu temperamento
explosivo e sua falta de tato, a organização opta por eleger como presidente Bruce Niles ( Taylor Kitsch), um homossexual
hesitante em sair do armário, que acha que a melhor forma de conseguir ajuda
para a causa é a diplomacia e a discrição. O telefilme não se furta em mostrar
que a resistência em aceitar a doença existia também entre os próprios
homossexuais, em sua maioria pessoas preocupadas apenas em usufruir das
benesses da vida louca.
Em síntese, estes dois homens ( Ned e Bruce) representam
duas vertentes da situação. Na medida em que os anos setenta representaram o
momento da revolução sexual e do sexo livre, homossexuais tentavam fugir do estigma
e acreditavam que podiam exercer seu direito de opção sem ter que dar muita
satisfação à sociedade. Paradoxalmente, a tentativa de Ned de expor a todo
preço a omissão das autoridades com relação à epidemia que se instalava
silenciosamente, traz de volta o medo de ser discriminado justamente pelo que a
doença representava. De forma cruel, estes homens vão percebendo que serão
repudiados não apenas pelos seus atos, mas pelo que eles acabando produzindo, a
exposição de corpos magros e cheios de feridas que procuram disfarçar com o uso
de chapéus, gorro e cachecóis.
O filme oscila entre a delicadeza e a brutalidade e conta
com interpretações brilhantes. O Ned de Mark Ruffalo é um homem obstinado que
não teme a exposição, ao contrário, em certos momentos parece massagear seu ego
com ela. Ruffalo compõe o ativista com pequenos e sutis movimentos mesmo nos
momentos mais agressivos e consegue alternar as expressões de seu rosto entre a
histeria que sua indignação promove e a emoção pura que reflete sua paixão por
Félix.
Matt Bomer é outra excepcional surpresa na pele do jornalista de celebridades Felix Turner. A
construção de sua personagem viaja em um primeiro momento pelo charme atraente
herdado de seu personagem em White Collar - Neal Caffrey, descolado e
divertido, para depois mostrar-se sensível e apaixonado, sem cair na pieguice
quando do seu relacionamento com Ned. Atingido pela doença, depois de decidir
viver com seu parceiro, o Félix de Bomer carrega dolorosamente o fardo,
transparente em sua expressão de revolta e comiseração. Com uma maquiagem
impressionante e com dezoito quilos a menos a contar do início das filmagens, a
figura frágil e cheia de dor de Félix é o retrato da impotência frente à
situação.
Júlia Roberts traz credibilidade ao papel da recalcada
médica cadeirante, acometida de poliomielite na infância, que não se conforma
com o fato dos homossexuais não deixarem de ter relações entre si em detrimento
da própria segurança, e se esmera no
discurso inconformado diante do fato de não ser levada a sério, seja pelos seus
pacientes, seja pelos órgãos governamentais de quem recebia recursos para dar
prosseguimento à pesquisa. Júlia se despoja de qualquer vaidade e cria uma
mulher que encontra na adversidade a força motriz que a leva vida adiante.
Merecem destaque também por ótimas interpretações Alfred
Molina e Jim Parsons. Molina faz Ben Weeks, irmão heterossexual e bem sucedido
de Ned, a quem devota todo o esforço possível para ajudar o irmão a ser feliz,
desde que isso não implique em ter que aceitar oficialmente sua opção sexual.
Ben carrega consigo o desconforto da situação em conflito com os sentimentos de
carinho que sente pelo caçula e o ator carrega a personagem com emoção e
dignidade.
Quanto a Jim Parsons devo dizer que me surpreendi em vê-lo
tão confortável em um papel dramático e sensível, enfrentando com facilidade o
risco que todo ator que faz um personagem marcante por vários anos seguidos
corre, em seu caso, o nerd sarcástico e irônico da comédia Big Bang Theory. Ele
compõe com primor seu Tommy Boatwright, sendo responsável pelo momento mais
honesto do telefilme, quando diz, no velório de seu amigo a frase que inicia
este texto. Ele dá palavras ao sentimento de insignificância que se abate sobre
todos ao perceberem o descaso com que são vistos pela sociedade e a omissão de
um governo que deveria tratar-lhes com a mesma decência dedicada a todo o resto
da população.
A despeito de doer demais saber que a história narrada é
verdadeira, a direção de Ryan Murphy prima por ser claustrofóbica, contundente
e ofensiva na medida certa. Nenhuma cena no filme, por mais chocante que seja, é
gratuita. Algumas cenas assustam por serem dolorosamente verdadeiras, sem em
momento algum transbordar o sensacionalismo barato e apelativo, caso da cena do
trem, onde a repulsa dos passageiros pelos homens marcados fisicamente pela
doença é expressa entre olhares de pânico ou reprovação e da cena do banho de
Félix, feita sem qualquer vaidade ou pudor, desconstruindo passo a passo em
gestos, toda a dor que não consegue ser medida em palavras. Situação semelhante
ocorre na cena em que a mãe ajuda a carregar o corpo de seu filho embrulhado em
um saco de lixo. É impactante e de dor desmedida, mas totalmente condizente com
o que acontecia naquela época.
Mesmo as cenas de sexo entre os dois atores principais, além
de necessárias são discretas e não apelativas. Não há como se ofender ou achar
exagerada uma cena de nudez como a do primeiro encontro, que reflete a paixão à
flor da pele ( notem as lágrimas que escorrem do rosto de Félix enquanto eles
fazem amor) ou a do banho, que acontece em dois momentos diferentes e traduz o
desespero que a impotência causa.
A trilha sonora (e a falta dela em diversos momentos) e a
opção de fazer uso de flashbacks para contar a história são recursos preciosos
e bem utilizados. A câmera parece
flertar com a beleza extraordinária de Félix e ao mesmo tempo, causar asco nas
cenas que mostram as consequências da doença. Os planos em close-up no metrô,
por exemplo, traduzem o desespero em todas as palavras que não precisam serem
ditas.
O filme abrange os quatro primeiros anos de aparecimento da
doença, mesmo tempo em que foi solenemente ignorada por associações de
homossexuais, órgãos de saúde pública, prefeitura, governos estadual e federal.
Mostra o crescimento do GMHC, sua luta para ganhar visibilidade e a tentativa
de levar ao governo federal o apelo por ajuda. A título de curiosidade, Ronald
Reagan, presidente dos Estados Unidos nesta época era amigo pessoal de Rock
Hudson. Quando o ator declarou estar com AIDS, o presidente não fez qualquer
comentário publicamente. Em particular, indicou ao amigo uma clínica em Paris
que estaria estudando os efeitos da Aids e fez uma recomendação pessoal ao
presidente francês François Mitterrand para que seu amigo tivesse todo o apoio
necessário. O filme em vários momentos deixa bem clara a posição da presidência
nesta época. Eles sabiam o que estava acontecendo, mas o assunto era polêmico
demais para que houvesse um posicionamento mais efetivo.
Mas, no final das contas o telefilme, a despeito de documentar
o retrato de uma época, é um filme de amor. É o amor que move Ned a seguir em
frente, a recusar-se a abandonar seu amante, mesmo correndo o risco de
infectar-se. É o amor próprio que motiva os homossexuais a se assumirem para
não morrer. É o amor pelo próximo que mantém viva a associação, que atravessa
obstáculos e enfrenta o inimaginável para alcançar seus objetivos. É o amor
pelo amigo falecido que faz com que a ativista Estelle abrace a causa e decida trabalhar como
voluntária. É o amor de Ben por seu irmão que proporciona a ele a oportunidade de
superar seus preconceitos e tomar uma posição. E é a total falta de amor pelo
ser humano que torna as lideranças desta época responsáveis pelo maior caso de
mortes por omissão de que se tem notícia.
The Normal Heart é um filme corajoso pela sua posição e
realização, bem dirigido e roteirizado, com interpretações magistrais que deixa
bem claro porque a televisão tem alcançado números de audiência muito mais
interessantes do que vários projetos cinematográficos. Sem medo de ousar, o
telefilme segue o rastro de outras produções ao estilo de True Detectives (
também da HBO) e deixa claro que obras deste calibre chegaram para ficar. Mais
do que recomendado, eu diria ao leitor que é um telefilme obrigatório, que sem
dúvida alguma, fosse feito para o cinema, teria diversas indicações ao premio
máximo, o Oscar. Não deixem de ver.
Até a próxima!
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