Seu Antonio,
Hoje me bateu uma saudade louca... Me lembrei de como o senhor dizia
.... "deixa a menina..." me lembrei das palavras cruzadas de tabuleiro
com letras de madeira em Santos, do 21, do rouba monte nas tardes de
chuva sem praia nas férias de janeiro.Da enorme quantidade de tralha que
o senhor ajudava a gente a carregar para a praia, o baldinho, as
raquetes, a prancha de isopor. Das esculturas
na areia... Dos passeios no centro onde o senhor me mostrou pela
primeira vez um tabuleiro de xadrez na praça. De levar pão para os
pombos no tempo em que pombo era um bichinho encantador que vinha comer
na palma das nossas mãos e a gente achava o máximo! Das cocadas e
queijadinhas das senhoras vestidas de branco nas barracas da biquinha.
Me lembrei do quanto o senhor amava ouvir no radinho de pilha o mesmo
jogo que estava passando na tv. Do banquinho poleiro na sacada, e de
quanto o senhor adorava as sacadas dos apartamentos que teve. Dos
desfiles de carnaval na Av Presidente Wilson em que o senhor me punha
sobre o muro para eu enxergar melhor. Dos passeios no Aquário, onde os
mesmos peixes pareciam sempre outros a cada visita e das brincadeiras no
labirinto do parquinho do Pelé. Me lembrei das intermináveis viagens na
perua para ir e voltar da escola, sempre a primeira, sempre a última e
do orgulho secreto que eu sentia por ser a neta do "Seu Antonio da Perua
Escolar". Senti saudades da soda diluída no vinho e do senhor dizendo
para a vovó que era pouco vinho, só para dar cor na soda... Do primeiro
passeio de bicicleta sem rodinhas no parque dos trabalhadores no Tatuapé
e dos balões de junho com cola de farinha, cujo breu pegava fogo antes
mesmo de atingir mais que cinco metros de altura.... Das pipas empinadas
na praia que o senhor me ensinava a colar, com papéis de seda de tantas
cores, com rabiola comprida, sempre de jornal... Eu queria fazer alguma
coisa pouco comum e era sempre sua voz dizendo: deixa a menina....
A casinha de bonecas da rua dos Bancários ( mesmo que tivesse sido
construída para a mamãe), o primeiro gravador com os tres irmãos
cantando o sucesso do momento: Assassinaram o Camarão dos Originais do
Samba. Tenho esta fita guardada até hoje. Foi no natal em que ganhei meu
primeiro jogo de xadrez. Presente seu. O balanço da Fazendinha, o
caramanchão. As tardes de domingo ouvindo no aparelho antigo da Vozzo o
disco de vinil grosso tocar pela milésima vez a Nega Maluca, o
Chapeuzinho Vermelho e a Formiguinha e a Neve ( e irremediavelmente eu
acabava às lágrimas ao fim da faixa, morrendo de dó da formiguinha).
Depois da sessão infantil, o senhor punha lá seus tangos em 78 rotações e
mal sabia que anos depois eu adoraria Gardel graças àquelas tardes. Me
lembro do pé de tomate da Emboaçava que o senhor ensinava a regar, me
lembro que quando jogava o Corinthians tudo mais parava ao seu redor.
Me lembro do seu gosto pelos faroestes, de quando John Wayne me mantinha
sentada quietinha ao seu lado na sala, mesmo que eu não estivesse
entendendo lhufas do que estava passando.
Hoje senti saudades
de quando andávamos até o Morita para comprar alguma coisa, o senhor
sempre adorou um supermercado, não é? Tenho uma vaga lembrança do
apartamento do Embaré, eu era menina ainda, mas embora os detalhes me
falhem, algumas coisas ainda parecem tão claras para mim.
Eu
cresci, e um dia apresentei ao senhor meu futuro marido. Sempre
economizando palavras, enquanto a vovó tinha milhões de coisas para
dizer sobre o Afonso, o senhor me disse apenas: "- Você está feliz?" Eu
estava e eu nunca vou esquecer aquele abraço que o senhor me deu naquela
tarde.
Eu casei. Meu apartamento era tão pequeno que eu tinha
que convidar as pessoas para almoçar aos poucos. Chegou sua vez. O
senhor e a vovó foram almoçar em Guarulhos, meu primeiro apartamento e
eu fiz panquecas. Em trinta segundos o senhor conheceu o apartamento
todo e na cozinha apenas me perguntou: "- Você está feliz?" Eu estava e
mais uma vez só tive a aprovação em seu rosto. Não sei se as panquecas
estavam boas, mas o senhor só teve elogios para nós dois naquele dia.
Então eu engravidei. E o senhor fez com meu filho o mesmo que fazia
comigo, adorava transgredir. Apesar dos protestos, ligava a mangueira e
dava na mão do Bruno para ele molhar o jardim, sabendo que ele iria
molhar a casa toda e mais um pouco. E quando eu e vovó protestávamos o
senhor dizia: - Deixa o menino....!" Naquele galpão do fundo da
fazendinha o senhor apresentou ao meu filho parafusos, martelos, uma
tesoura de poda que o senhor deu para ele cortar a grama apesar dos meus
protestos e uma mesa de bilhar, quando o taco era ainda maior do ele
podia ser. Fazíamos churrascos até tarde, quando o senhor se recolhia,
já cansado mais cedo e dizia que podíamos ficar até quando quiséssemos.
Sua generosidade nunca teve limites. Certa vez, quando me visitou em
Vitória e eu quis lhe apresentar a cidade, soube que ao chegar em São
Paulo, disse à mamãe: "- Coitadinho do menino, ela arrasta ele prá todo
lugar com aquele chinelinho...." se referindo ao Bruno e ao fato de eu
andar demais com ele a pé. O senhor sempre amou seus filhos e netos de
uma forma peculiar. E sofreu calado todas as dores que tivemos e apesar
de amar meu pai, sabemos que não foram poucas.
Sempre me dói
pensar que eu nunca deveria ter ido embora do hospital naquela tarde. O
senhor me mandou embora e eu fui. O senhor me disse que estava cansado e
eu acreditei. É um destes arrependimentos que a gente leva para a vida
toda. Mesmo se eu vivesse várias vidas ainda assim não teria como lhe
agradecer o suficiente por tudo o que o senhor foi
para mim. Sei
que neste momento o senhor está no "céu dos vovôs que foram cedo demais
embora" apreciando as vitórias dos seus netos e bisnetos, os que o
senhor conheceu e os que não conheceu, inclusive o que carrega
orgulhosamente o seu nome ( meu sobrinho lindo).
É comum para
mim sonhar com o senhor. Ouvir sua voz, seu jeito meigo e carinhoso de
sempre querer nos colocar em primeiro lugar. E hoje, ouvi tanto sua voz
em sonho que quis escrever em sua homenagem. Quis, de alguma forma dizer
a todo mundo como o senhor era especial. Eu tenho certeza que se fosse
vivo estaria ralhando comigo, dizendo que não fazia nada de mais. Além
de generoso o senhor era modesto. E muito. Iria me perguntar se não
tenho nada para arrumar, se o chuveiro não precisa de um ajuste, se não
há lâmpadas para trocar.
Hoje senti saudades suas. Sinto
sempre. Mas hoje a saudade está maior. Mais apertada, mais urgente. Sei
que o senhor, de onde está, toma conta da vovó, da mamãe, do titio e de
todos os netos e bisnetos. Sinto que quando preciso eu rezo tanto que o
senhor nunca falha em me ajudar. Sinto que o senhor está sempre por
perto quando preciso. Mas hoje eu senti uma imensa necessidade de falar
com o senhor, de um jeito que todo mundo saiba como o senhor está
presente e de como eu continuo lhe amando incondicionalmente. Eu sei que
o senhor está por perto e vai saber disto que eu postei, de um jeito ou
de outro.
Nunca deixe de habitar meus sonhos, pois não posso
esquecer sua voz. Saiba sempre que deixou uma família exemplar, com
filhos, netos e bisnetos que só lhe deixariam orgulhosos. E nunca, nunca
se esqueça: eu te amo incondicionalmente.
Seu Antonio, sinto muita saudade........
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