domingo, 28 de abril de 2013

Lembranças De Uma Savana – Meus Comentários



Leio muito desde sempre. Aos doze anos já era rato de biblioteca, primeiro da biblioteca regional da Vila Prudente, depois da regional da Móoca, ambas na cidade de São Paulo. Mais tarde entrei para o Clube do Livro, e assim tem sido durante minha vida toda. Foram nas mágicas páginas dos livros mais diversos que sempre viajei para o passado, para o futuro, para o sertão nordestino ou para a Europa medieval. Em brochura ou volume encadernado conheci a poesia de Drummond, embarquei em um trem para o Expresso do Oriente, chorei a Morte e Vida Severina. Ler é sempre prazeroso. Mais ainda se for um bom livro.

O que me leva a Lembranças de Uma Savana escrito por Caio Vieira Reis de Camargo ( Editora Multifoco - RJ). Não conheço o autor pessoalmente, mas tive o prazer de trocar informações e comentários com ele diversas vezes em uma comunidade do Orkut em que participo ativamente. Ao longo destes três anos e pouco, tive o privilégio de encontrar alguém que, como eu, semanalmente deixava na comunidade suas impressões gerais sobre o teor e a realização de episódios de uma série policial. A maioria das pessoas que participam destas comunidades deixam observações básicas, contendo apenas a sua impressão pessoal. Me chamava a atenção o fato de Caio sempre escrever um texto bem completo, cheio de observações pontuais e relevantes, normalmente muito semelhante ao que eu pensava ou, eventualmente, escreveria também.

Com o passar do tempo, ler seus comentários passou a ser delicioso ( obviamente ler todos os comentários sempre é muito gostoso, pois é uma forma de observar vários pontos de vista acerca de um assunto, mas não posso negar que seus comentários estão sempre entre os mais esperados por mim). Dito isto, posso dizer que quando soube que ele houvera escrito um livro, fiquei muito curiosa e, de certa forma, tinha certeza de que gostaria da obra.

O livro tem dois momentos muito distintos para mim. O primeiro, durante a apresentação do personagem principal, por motivos pessoais – pois nasci e vivi por 26 anos em São Paulo, cidade que ele usa como cenário inicial para sua estória – levou-me um pouco de volta à minha juventude, à época em que eu mesma cursava faculdade nesta cidade, e vivi um pouco desta estória também. O segundo, claramente fictício, é o momento em que decorre a maior parte da trama e julgo, tenha sido o mais difícil de escrever. 

A estória gira basicamente em torno de um jovem que deixa o conforto do lar, da família e a segurança de seu emprego para viver durante trinta dias uma experiência quase surreal, em um país desconhecido para ele, com uma cultura avessa à que foi criado, em meio a uma guerra civil  sangrenta e injusta e ele, em meio ao caos que se forma é obrigado a tomar uma decisão que mudará sua vida para sempre. O autor permite-se do início ao fim construir personagens periféricos ricos em detalhes, o que torna a leitura bastante interessante, mesmo antes de atingir seu ápice. Gosto de livros ricos em informações, eles me dão elementos suficientes para fazer-me embarcar de corpo e alma na aventura proposta. O jovem professor universitário de língua e história grega, apegado à família e às suas obrigações familiares se dispõe a representar a universidade em que ministra aulas em um projeto humanitário promovido pela ONU em uma comunidade do Sudão como suplente e acaba de última hora sendo convocado para viajar, uma vez que o professor titular adoece.

Antes mesmo de viajar, o autor já nos fornece uma gama de personagens bem descritos, que embora apareçam pouco ou quase nada, ajudam a compor o dia a dia do personagem principal.

No entanto, é no convívio com outros voluntários de vários países já no Sudão que a trama fica mais interessante. Para leitores que gostam de ir direto ao assunto não recomendo a leitura. A trama envolve inúmeros personagens detalhadamente construídos e explora ao máximo as relações pessoais do elemento principal com seus coadjuvantes. O professor, que viaja ao Sudão com a missão de dar aulas, envolve-se amplamente com um grupo de quatorze crianças que o farão questionar-se sobre quase todas as suas convicções. A narrativa acerca destas atividades com seus pequenos alunos é ao mesmo tempo cativante e chocante, pois traz o melhor dos corações infantis unido à crueldade a que estão expostas.

Excelente também é a dinâmica estabelecida pelo médico e a enfermeira do projeto com o professor. Bryan O’Hara, o médico irlandês faz um excelente contraponto à timidez do contido Gabriel, nosso herói na estória. Companheiros de dormitório, Bryan trará no decorrer dos capítulos um pouco de humor e leveza para o árduo tema tratado. O entrosamento dos dois voluntários vai se sedimentando aos poucos, visto que são expostos a situações assustadoras e isso só os fará mais fortes. Alice por sua vez, encarrega-se do lado suave e quase romântico, tornando o triângulo ( não amoroso) ainda mais interessante.

Sobre as milícias e grupos separatistas eu imagino que a pesquisa tenha sido intensa, pois traz um relato desta espécie de "limpeza étnica" que acontece já há tempos e seus extermínios vergonhosos em Darfur e região( também no Sudão), onde milhares de vidas já foram ceifadas em nome da raça ou da religião. Obviamente que existem as licenças poéticas necessárias para tornar o enredo e o desfecho mais interessantes, mas o que importa mesmo é que, durante a leitura me vi envolvida pelas crianças e torcendo por um desfecho feliz. Claro que em se tratando do tema abordado seria hipocrisia demais um final feliz por completo e senti um nó na garganta com o desenlace de estórias como a de Chuki, entre outros personagens, mas o autor encontra uma solução emocionante, mesmo que nem tão crível, para deixar em nossos corações plantada uma semente de esperança: apesar dos pesares, nem tudo está perdido.

É difícil escrever sobre um livro sem acabar fazendo comentários que tirarão o prazer da surpresa de quem lê o que escrevo. Pessoalmente, com os livros, ao contrário do que acontece com as séries que acompanho, não gosto de muita informação. Mas posso afirmar que é um livro muito interessante, que enfatiza o quão longe de conhecer a realidade mundial a maioria das pessoas está ( ler nos jornais sobre a miséria e os conflitos na África está longe de nos dar a dimensão exata do que isto significa) e que deixa clara a bagagem emocional que uma pessoa adquire quando enfrenta uma situação destas de perto. É um livro de ficção, mas nada distante de uma realidade que todos sabemos existir. O grande problema é que na maioria das vezes nós nos sentimos comovidos e incomodados pelos quatro ou cinco minutos que dura a notícia na televisão e seguimos em frente, para lamentarmos a notícia local, a inflação ou o resultado do jogo do nosso time favorito. Visto desta forma, o livro presta uma enorme homenagem às pessoas que abrem mão de seu conforto, suas vidas pessoais e outros bens para ajudar o próximo, para levar a quem precisa, instrução, saúde, nutrição ou mesmo consolo para quem perdeu tudo. No livro o personagem é um jovem universitário, mas sabemos do belo trabalho que é feito pelos Médicos Sem Fronteiras e outras organizações não governamentais que atuam de forma parecida. 

Ao autor, a quem considero um amigo, peço que releve meu jeito meio informal de relatar minha experiência lendo sua obra, pois estou muito longe de ter conhecimento acadêmico para algo mais elaborado e deixo meu incentivo para que continue nos contando belas e boas estórias, pois você é ainda muito jovem, tem muito o que aprender e ensinar. Fico no aguardo do próximo livro,  da próxima dedicatória e de um próximo Abayomi para ganhar meu coração!


Um grande abraço,


Débora

terça-feira, 2 de abril de 2013

FIC - ETERNO - Capítulo 2





"PARA QUEM AMA, NÃO SERÁ A AUSÊNCIA A MAIS CERTA, A MAIS EFICAZ, A MAIS INTENSA, A MAIS INDESTRUTÍVEL, A MAIS FIEL DAS PRESENÇAS?"
 
Marcel Proust


- Puxa, foi uma coisa tão emocionante, JJ certamente não esperava por tudo aquilo, foi uma cerimônia linda de se assistir, imagine para ela, que foi pega de surpresa! E a casa de David Rossi, nossa, que coisa mais incrível, aquele jardim, as flores.... Tudo estava tão lindo.....

Ele não conseguia acompanhar nada do que Beth estava dizendo. Ainda sentia o perfume dela, se lembrava do sorriso dela, ouvia o silêncio dela. Segurava o volante com as mesmas mãos que enlaçaram seu corpo horas antes. O corpo quente, macio. E fechava a mão em torno do volante roliço, como se conseguisse manter na memoria a maciez daquela mão. Até então, Emily Prentiss sempre fora um desejo inatingível, uma compulsão não permitida, que existia apenas entre todas aquelas outras coisas que desejava ter tido, ter sido, e não tivera, tampouco fora. 

Para seu infortúnio ou sua sorte, Jack demonstrara sinais de cansaço logo após dançarem e foi a deixa para, em seguida, irem embora. Seu filho adormecera em um sofá da sala de David e foi Penélope, saindo do toalete que avisou o pai que o filho pegara no sono. David chegou a oferecer para que o menino ficasse melhor acomodado em um quarto, mas para ele, a melhor das alternativas era encerrar por ali uma noite que tivera momentos para lá de perfeitos. E, na certeza de que não poderia prolongar a perfeição, era melhor apenas não alimentá-la. 

- Aaron.... O farol abriu.... - Ela elevou a voz  -  Aaron, o farol!

Ele engatou a marcha e atravessou o cruzamento. O pensamento distante. O perfume de Emily...

- Está tudo bem?


- Está, sou estou cansado, foi um final de semana e tanto.


- Jack está dormindo pesado. Acho que você vai escapar de dormir debaixo da mesa da sala esta noite... – Ela riu sua risada mais gostosa e de forma ainda meio divertida perguntou:  - Por que está virando aqui? Não vamos para sua casa?

Ele havia esquecido. Sequer passara pela sua cabeça. O carro dela estava em sua casa. Quando Jack pediu para que ela passasse a noite com eles, sentiu certo alívio. Era muito ruim em sua idade ter encontros furtivos, esperar o filho dormir para ter sexo, fazer sua namorada sair antes do seu menino acordar. Beth tinha sido definitivamente uma coisa boa em sua vida. Ela era uma companhia divertida, brincalhona, tinha paciência com seu filho e ele havia finalmente descoberto que não precisava ser infeliz a vida toda. Ele, apesar de encher-se de culpa, sentia-se bem ao lado dela. Tomara muito cuidado para não precipitar as coisas com Jack, depois de tudo o que o menino sofrera com a perda da mãe, mas não dava para empurrar seu filho para sua cunhada toda vez que queria dormir com sua namorada. Afinal, ele não estava perdidamente apaixonado, mas era bom levar uma vida mais ou menos normal de vez em quando, ter algo para lhe distrair dos tão escuros momentos de sua vida, mesmo que Beth nunca fosse ser Emily...

- Claro, você tem razão, havia esquecido...Me desculpe....

- Hotchner, tudo isto é só cansaço? Ou há algum outro problema?

Ele ainda estranhava ser chamado assim. Ela nunca usava seu primeiro nome. Sequer usava a habitual abreviatura de seu sobrenome. Sempre Hotchner. Tão diferente do tão costumeiro Aaron que passara anos ouvindo Haley dizer... No começo ele achou engraçado. Depois, deixou de se importar. 

- Claro, por que a pergunta?

- Não sei bem, você saiu diferente da festa, há alguma coisa lhe incomodando? 

Ele poderia passar horas explicando a ela que o incomodava ter desperdiçado sua vida, que fizera tantas escolhas erradas que não sabia bem por onde começar para consertar, que sua consciência doía toda a vez que fazia amor com ela  pensando em outra mulher, que se achava um sujeito aproveitador, usando-a para satisfazer seus anseios, desejando alguém que não ela, tão boa criatura, que não merecia tamanha desonestidade. Deveria ser honrado e dizer sinceramente o quão maravilhoso era ter alguém que lhe fizesse tão bem, mas que, em seu íntimo, não era ela a mulher que amava. Canalha. Era como ele se sentia. Um covarde. Um homem de sua idade vivendo uma vida de faz de conta, temendo em suas noites ao lado dela chamar pelo nome errado, no auge do prazer gritar por um nome que não fosse o da mulher que partilhava sua cama.... Sentiu a mão pequena e quente tocar sua coxa, e quase envergonhou-se por gostar de sentir o calor que subia pela virilha. Ela não era Emily, nunca seria, mas esta escolha ele tinha feito há algum tempo, era tarde demais para lamentar-se. Ele percebeu a mão subindo e descendo sobre o tecido de gabardine escura em sua perna e seu corpo reagiu, sem qualquer pudor ou honestidade.

- Não, não há nada me incomodando.... Só.... Como eu disse, foi um longo final de semana... E, você tem razão, a cerimônia foi linda...

Ele trocou a marcha e aproveitou para colocar sua mão direita por sobre a mão de Beth em sua perna. Apesar da reação natural de seu corpo, ele não conseguia deixar de pensar naqueles poucos minutos dançando com Emily. 

- Beth...

- Você quer que eu pare?

- Vamos chegar em casa, sim?

Conformada, ela subiu vagarosamente a mão, permitindo-se brincar com cada centímetro de tecido encontrado pelo caminho até o braço, até alcançar sua nuca e perder seus dedos nos cabelos curtos dele, acariciando-o sutilmente, até pousar sua mão em seu ombro direito.

- David Rossi está dormindo com sua chefe?

- Como?

- David Rossi... Erin Strauss, é o nome dela, não é? Eles tem um caso?

- Como vou saber Beth? Não pergunto ao David com quem ele dorme... Por que você acha isto?

- O jeito como eles se olham... Uma mulher sabe... Tenho certeza que eles têm algo...

Ele sentiu-se intimidado pelo comentário. Ela saberia como ele olhava para Emily Prentiss? Ela teria percebido alguma coisa? Ele só queria chegar logo em casa. Era tudo o que queria. 

- Como assim, uma mulher sabe? Só por que dançaram juntos...

- Não, da forma como dançaram juntos...

- Você dançou com vários dos meus colegas esta noite e nem por isto eu vou achar que você está interessada em algum deles....

- Hotchner, você pode ser ótimo profiler para pegar bandidos, mas em termos de romance, você não entende nada.... ou faz que não entende....

Quando estacionou na vaga de garagem de seu edifício, não deixou tempo livre para mais comentários. Ela estava tentando dizer alguma coisa ou era sua consciência? Antes que ela pudesse desatar o cinto de segurança, ele já abrira a porta de trás do carro e  tomara o corpo exausto de seu filho em seu colo, cuidadosa e silenciosamente. Ela buscou em seu bolso a chave da porta e a abriu sem muito alarde. Ele ouviu-a perguntar baixinho se precisava de ajuda e balançou a cabeça negativamente. Foi direto para o quarto de Jack e na penumbra puxou a colcha que cobria a pequena cama. Seu filho, dormindo pesado, nem percebeu o pai a trocar-lhe as vestes de festa por um confortável pijama e lhe acomodar de forma aconchegante entre as cobertas forradas de estampas do Superman. Hotch ficou uns minutos a olhar para seu menino e em um instante foi inundado por inúmeras lembranças. Haley, as aulas de teatro, o seu casamento, seu menino sentindo falta de sua mãe,  as brincadeiras de Jack  com Beth no parque....

- Acha que ele vai dormir direto? - A voz vinha da porta, por trás dele, era baixa e curiosa.


- Acho que sim, ele está cansado, é tarde e ele brincou muito. – Hotch pousou carinhosamente um beijo na testa de Jack e afastou-se silenciosamente. - Venha, vamos nos deitar.

Já em seu quarto, Hotch sentou-se à beira da cama e pôs a cabeça entre as mãos. Estava cansado, confuso, frustrado. Ainda podia sentir o perfume dela no ar. A pequena mão parecia ainda estar entre seus dedos. Um encontro. Ela havia pedido um encontro. Que diabos ele achava que poderia acontecer?  Um encontro. Ele precisava pensar sobre isto. Precisava preparar-se para ouvi-la e ajudá-la no que fosse preciso, sem deixar transparecer seus sentimentos, sem fazer papel de bobo.

- Você não vai mudar de roupa para deitar-se? 

Ele deu-se conta de que ela saíra do banheiro vestindo uma camiseta branca e uma calcinha minúscula.

Beth ajoelhou-se atrás dele sobre a cama. Os braços dela o envolviam e se espalhavam por toda a parte. Lábios quentes percorriam seu pescoço e a língua brincava com o lóbulo de sua orelha. Ele levantou-se enquanto ainda tinha domínio de seu corpo.

- Volto já!

- Eu não vou a lugar algum...

Ele ergueu-se lentamente guiando-se apenas pela claridade vinda da janela, apanhou um par de roupas limpas na primeira gaveta da cômoda e seguiu para o banheiro. Fechou a porta e encostou-se nela. Vislumbrou seu rosto no espelho instalado na parede oposta e teve vergonha em mirar-se nele. Seu corpo precisava de sexo. Mas não era com Beth que ele iria fazer amor nesta noite. Em quase nenhuma noite era, mas hoje seria diferente. Indecentemente diferente. Ele daria tudo para ao abrir seus olhos ver Emily sob seu corpo faminto. Ele precisava fazer apenas tudo como sempre fazia, apenas não podia dizer o nome errado... Era tudo tão.... como sempre....

Deus, aquilo precisava ter um fim. Ele não tinha a menor ideia sobre o que Emily queria falar com ele no dia seguinte. Mas uma ideia se formava sobre o que ele queria falar com ela. Ele precisava pensar sobre tudo aquilo. Mas, certamente, aquele não era o melhor momento para isto. 

Após terminar tudo o que fora fazer no banheiro, voltou para a cama e enfiou-se embaixo dos lençóis. Não demorou para que as mãos ávidas de Beth explorassem seu corpo como se fossem propriedade de direito. Ele virou-se e a abraçou carinhosamente, mas cheio de fome. Seus lábios estavam por toda a parte, e não demorou para que seu corpo reagisse como o esperado. Quando ele a penetrou, podia jurar que tentou manter-se honesto, mas sabia, bem lá no fundo, no pouco de razão que lhe sobrava, que estava fazendo amor com a mulher com quem partilhara um silêncio eterno naquela noite. Mais do que todas as noites, por tantos anos em sua vida, aquela noite, era Emily chamando por seu nome, não importava o quanto a razão lhe negasse a verdade.

Ambos alcançaram o prazer que buscavam. Ele só conseguia pensar no quanto estava sendo egoísta.

Ela só conseguia pensar por quanto tempo mais ela teria paciência. Afinal, ela nunca seria Emily....

**************************

Emily foi uma das últimas pessoas a sair da casa de David Rossi, como se quisesse aproveitar todos aqueles momentos o máximo que fosse possível. Graças a Deus tinha amigos incrivelmente divertidos. Dançar várias vezes com Reid, Kevin, Morgan e até com Rossi aplacou um pouco a dor de ver com seus próprios olhos aquilo que se recusava a crer. O homem que amara desde sempre estava formando uma nova família, estava feliz, e não era ela, novamente, a responsável por isto. Se por um lado ficava feliz por vê-lo bem disposto e mais amigável, por outro doía demais e ela estava cansada de sentir dor. Tudo o que passou com Doyle, ter suas feridas e seu passado expostos e escancarados, o exílio, o luto dos amigos, as explicações em sua volta, tudo aquilo sugara dela o que ela sempre tivera de melhor: sua capacidade de sobreviver a tudo, de superar, cedo aprendida pela necessidade de se adaptar a uma vida quase cigana, sem raízes profundas, à mercê do desejo de seus pais.

Não tinha mais vinte anos, não bastava mais um corte de cabelo rebelde, fumar escondido, afrontar e desafiar. Foi-se o tempo em que bater de frente era a solução para todos os seus problemas, ainda que criasse outros ainda maiores por isto. Estava cansada. Era hora de render-se e aceitar que morrera no dia em que Doyle a feriu. Com ela para Paris, partiu a confiança que seus melhores amigos tinham nela, partiu a estória que havia consolidado na Unidade de Análise Comportamental, partiu tudo o que havia pouco a pouco construído para aproximar-se de Aaron, sendo a presença discreta que o apoiava, quando ele nem sabia ao certo que precisava de apoio.

Ela tirou os sapatos de salto alto, atirou o vestido na poltrona ao lado da janela do quarto e jogou-se na cama. Sérgio enroscou-se nela, como festejando sua volta ao lar.

- Então, amigo, o  que você acha de Londres? Um recomeço, novas oportunidades profissionais, quem sabe um novo amor. Gatos tem problemas com fuso horário? Não, aposto que não. O que você acha da ideia?

O gato continuou a enroscar-se nela mais e mais em troca dos carinhos que ela lhe fazia. A proposta de Clyde era realmente irrecusável e vinha no mais oportuno dos momentos. E Londres não era exatamente do outro lado do planeta. Bem, mais ou menos. Mas não era exatamente disto que se tratava? De distanciar-se?  De criar uma segunda chance? David havia lhe advertido para que pesasse tudo com calma e ouvisse seu coração. Era disto que se tratava. Seu coração lhe dizia para sair correndo dali porque não iria sobreviver de sonhos. Não poderia trabalhar diariamente com o homem de sua vida, ali, tão ao seu alcance e tão distante. Bastava. Bastava de interpretar como esperança cada sorriso discreto, cada aceno gentil, cada frase educada, como a que ele lhe dissera naquela noite. Bastava. Pela manhã, ela comunicaria a ele seu afastamento. Nada a faria voltar atrás.

Mas, até lá, sonharia com o abrigo daqueles braços, onde poderia viver uma vida inteira. Até lá, dançaria em seus sonhos a noite toda e ouviria mil vezes ele dizer a ela em tom baixo que ela estava linda ou algo assim. Faria amor com ele, como em quase todas as noites acontecia nos seus sonhos acordada. Enquanto não amanhecesse ele seria dela, seus lábios murmurariam coisas sem sentido algum, sua pele arderia sob o seu toque e no momento certo, ela gritaria seu nome. Até o amanhecer, ela se perderia no silêncio daquele momento tão perfeito que deveria ser eterno. Só até o amanhecer....