Ela sempre habitou as nuvens. Desde pequena, muito pequena.
Não era difícil habitar as nuvens. Mesmo quando brincava com seus amigos
imaginários ou seus preferidos entre os personagens dos desenhos infantis que vinham
para a diversão, sempre lhe faziam companhia nas nuvens. Lá não haviam portas
batendo, nem gritos roucos, nem copos se quebrando.
Havia nas nuvens um silêncio mágico, daqueles de fazer as
músicas que cantarolava ficarem mais bonitas, mais alegres. Lá podia brincar
com seus poucos brinquedos, sua boneca preferida cujo braço teimava em
desencaixar a todo instante. Lá as nuvens tinham cheiro, tinham sabores. Cheiro
de talco, sabor de infância.
Enquanto
crescia as brincadeiras mudavam. Com giz na mão foi professora, com pedaços de durex
fazia curativos tal qual enfermeira. Um pano de prato amarrado no cabo de
vassoura a fazia girar loucamente como a porta bandeiras da escola de samba e uma blusa branca da mãe
virava jaleco de cientista. Mas nunca brincava sozinha. Estava sempre
acompanhada pelos seres de sua imaginação, cada amigo um nome diferente. E
sempre nas nuvens. Nuvens com cheiro de talco, nuvens com sabor de infância.
Nas nuvens era feliz e ainda que em terra firme, continuava
a habitar as nuvens. Ali ninguém sofria e todos eram amados. Fazia sua lição de
casa, que se tornava mais fácil quando feita nos chumaços enevoados e fofos,
todos em formas sempre diversas. Havia nuvens com forma de tudo: de castelo, de cãozinho,
de coelho, de boneca, de pipa, de casinha. Sua nuvem predileta tinha formato de
Papai Noel, pois adorava o Natal nas nuvens, era sempre menos barulhento que o
Natal fora delas. E lá não se quebravam os copos.
E crescia ainda mais e as nuvens ficavam cada vez menores.
Partia a procurar nuvem maior, mais espessa, em formato de biscoitos de Natal,
porque eram as mais bonitas e as melhores para se habitar. Lá as portas não
batiam. Ninguém gritava.
Então fez um trato com os céus, ia parar de crescer. Para
poder habitar as nuvens e nunca mais ouvir os gritos roucos. Mas lhe disseram
que era impossível, que crescer fazia parte da vida e que portas batendo iam
lhe deixar mais forte. Copos quebrando também. E os gritos roucos. Quis a
menina então ludibriar o destino e ser sempre criança nas nuvens, apenas lá. As
nuvens em forma de biscoito lhe pareciam cada vez mais distante e seu acesso se
tornava cada dia mais difícil. Os gritos roucos retardavam sua chegada. Mas ela
não desistiu de habitar as nuvens.
Com a idade buscou para si uma profissão e dela fez seu
ganha- pão. Gostava do que fazia para viver, mas ainda assim, não podia
trabalhar nas nuvens. Fez outro acordo com os céus, iria sempre levar um
tantinho das nuvens consigo para onde quer que fosse. Isso a faria sorrir, se
houvessem gritos roucos ou portas batendo.
Foi fácil enfrentar o dia a dia, agora que tinha um pouco
das suas nuvens consigo. Não ligava para os copos quebrados, pensava na alegria
que as nuvens traziam junto de si, os sorrisos, as canções da infância, os
personagens dos desenhos, todos perto dela, o tempo todo. Não era fácil quando
os personagens tinham que dar lugar aos semblantes sisudos dos adultos mal
humorados de seu cotidiano. Tampouco
quando seus amigos imaginários eram substituídos pelo chefe carrancudo ou o pai
infeliz. O cheiro de álcool, a lembrança do fumo, os sentimentos tristes todos
ela afundava na maciez das nuvens que carregava no bolso. Mas os gritos roucos
eram difíceis de calar. Quase não podia dormir.
Conheceu o homem de sua vida e quis levá-lo às suas nuvens.
Ele lhe prometeu ser fiel e fazê-la feliz, mas riu das criaturas imaginárias e
do seu lugar fofo e perfumado com forma de biscoito de Natal. Não demorou e a
casa transbordava dos gritos agora felizes das crianças a derramar o vinho do
pai à mesa. Eram várias vozes, uma para cada criança, todos filhos a quem ela
ensinou amar as nuvens. O barulho à mesa, a bagunça ao escovarem os dentes, os
tropeços nos brinquedos espalhados pelo chão, calavam os gritos roucos de sua
infância, fechavam as portas que batiam, salvavam os copos que quebravam. E
ainda assim, quando só, não abandonava o hábito de habitar as nuvens fofas e
brancas, cheias de magia ao luar. Nas nuvens buscava a paz que lhe faltava
ainda que tivesse tudo. Cobrava-lhe a vida ser crescida sem saber que a menina
grande só cresceria ao pisar diariamente naquelas nuvens, etéreas e cheias de
mistério, por toda vida ao manter viva a criança dentro de si. Era agora uma
criança grande, cheia de crianças menores a levar ao paraíso, ao lhes ensinar a
ver cada amigo imaginário a sua espera, em uma nuvem a cada esquina. Seus
filhos não ouviriam as portas a bater, nem os copos a quebrar, tampouco vozes
roucas a lhe tirar o sono e a paz. Não seus filhos. Com seus lápis coloridos iria
ajudá-los a pintar a vida, que quando sua só tinha uma cor.
Quando suas crianças já se recusavam a pisar todo o tempo
nas nuvens que ela habitava, sentia o corpo fraco, mas viva a mente que lhe reunia
forças para encontrar, perdidas em um bolso qualquer de seu vestido, as nuvens
que por trato com os céus carregava. Os músculos resistiam, mas a lembrança
acariciava seus pés, de névoa fofa e branca cheirando a baunilha como sempre se lembrara. Ainda podia rir das
piadas, ainda podia cantar as canções, mas recusava-se a manter as portas
batendo, os copos de seu passado quebrando frágeis, as vozes todas roucas o
tempo todo lembrando-lhe porque preferia
habitar as nuvens.
O homem que sempre amara postou-lhe um beijo carinhoso em
sua testa, e ela ouviu um Eu Te Amo sincero e contundente. Mesmo que ele nunca
reconhecesse, eles sempre dançaram na maciez das nuvens e ela sempre o arrastou
para aquele mundo mágico que ele recusava admitir. Ela o fez habitar as nuvens
sem saber. Porque nas horas difíceis que tiveram foi nas nuvens que encararam
os perigos, os medos, as decepções. Talvez ele nunca tivesse percebido, mas se
ela não tivesse habitado as nuvens, talvez não tivessem resistido a todas as
vozes roucas, a todas as portas batendo e aos copos que quebravam ao seu redor.
Foi descalça pisando nas nuvens que criou filhos fortes e felizes para criarem
outros filhos que brincariam a qualquer momento em suas nuvens. E, com sorte,
eles jamais ouviram portas a bater, vidros a quebrar, vozes a fazer tremer suas
mãos.
Em seus últimos suspiros desejou que a morte a encontrasse de pés
descalços na brancura etérea, que só conhecia vozes familiares, felizes,
amorosas. Sabia que por habitar as nuvens, aqueles a quem abandonava por hora
chorariam lágrimas com o sabor de um passado feliz, ouviriam os gritos de
alegria de uma vida plena vivida e dividida
entre a realidade, o brilho e a leveza das nuvens que possuíra. Pudera,
afinal, ser a menina alegre que misturava seus desejos aos seus sonhos e que
nunca cedera aos copos quebrando, às portas batendo, aos ruídos loucos que a
enlouqueciam.
Pode, enfim, descansar em paz.......