quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Estamos Nos Indignando Pelos Motivos Certos?


( E O Que É Certo Afinal?..)


Com tanta polêmica em torno do corpo de um homem nu em um museu, a única pergunta que não me abandonou estes dias foi: estamos nos indignando pelos motivos certos?

Um corpo nu deveria ser apenas um corpo nu. E é isto o que deveríamos ensinar a nossas crianças. Um corpo nu é aquilo que somos quando nascemos e é aquilo que servirá de adubo para a natureza quando partirmos. Apenas um corpo. Não deveríamos demonizar a nudez e menos ainda o sexo. Quando tratamos o assunto como um tabu a criança sente e o passa a tratar como tal. Claro que é difícil agir com naturalidade em uma sociedade pouco acostumada com aquilo que deveria ser óbvio, mas não é impossível.  

Seja pela religião, seja por motivos antropológicos, temos que entender que somos nós, adultos, que vendemos para a criança este rótulo de proibido, de errado, de demonizado que há na nudez, no toque, no sexo. Do meu ponto de vista, mais importante do que condenar a nudez ou o sexo é mostrar a importância do respeito ao corpo do outro, do entender o não, seja para o seu corpo ou para o corpo alheio. Respeito é mais importante que vergonha. Respeito é mais importante que pecado. Respeito é mais importante que qualquer outra palavra que a criança precise conhecer no que diz respeito a corpo e a sexo. Entendendo isto, fica mais fácil fazê-la entender que ninguém pode tocá-la, por exemplo.

E aí, volto a me perguntar, porque tanto barulho por um corpo nú, se não vejo ninguém escrevendo longos textos lamentando a miséria em que vivem tantas crianças neste nosso país, crianças vendendo balas nos semáforos, cujo dinheiro vai para pais se entupindo de drogas, crianças vendendo seus corpos nas paradas nas estradas em troca de comida, crianças perdendo uma infância enquanto batem carteiras ou pedem esmolas nas praças, ou pior, ficam secando a gente enquanto devoramos nossos lanches enormes e cheios de molhos e queijos, salivando e desejando que sobre ao menos uma remela que ele possa lamber do papel da embalagem jogada fora.... que país cruel este em que vivemos..

Há um menino assim aqui perto de casa. Um menino remelento, com cara de poucos amigos, oito ou nove anos, pasmem, ele não tem certeza da própria idade. Vive sentado na porta da padaria que freqüento, de tudo faz um pouco, lava para brisa, oferece doces, carrega carrinho de compras... Não tem uma cara muito simpática. Nem deveria ter. Seu nome é Pedro. Mas, segundo ele, todos o conhecem por Pedroca. Pedroca nunca foi à escola.  É o quarto de sete irmãos. Seu pai está preso e sua mãe trabalha lavando roupa, mas ele não sabe aonde fica, só que é lá pelos lados do morro do morro São Benedito. Mora em Jesus de Nazareth. A primeira vez que me pediu uma esmola eu lhe disse que nunca dava dinheiro, só comida. Ele me disse que tinha fome e eu lhe trouxe um lanche. Fiquei de longe observando para ver se ele não iria jogar fora, como alguns fazem, porque só querem dinheiro. Para minha surpresa ele comeu um pedaço e guardou o resto.

No dia seguinte, perguntei se ele estava com muita fome e ele me disse que sim, mas novamente ele comeu, observei de longe, apenas parte do que comprei para ele. Na terceira vez, perguntei a ele porque ele não comia o lanche inteiro. Ele ficou bravo, disse que eu estava vigiando ele e que não precisava comprar nada se não quisesse. Eu esperei ele se acalmar e perguntei porque ele estava tão bravo. Ele custou a responder. Na primeira vez que perguntei não me disse nada. Levou uns dois dias para ganhar sua confiança. Infelizmente, não era todo dia que eu podia ir encontrá-lo também. Depois de alguns dias, ele me disse que levava o que sobrava para os irmãos que eram menores do que ele.

Depois disto, passei a comprar sempre que o encontro, pão, queijo e leite para cinco pessoas. Claro que é uma despesa que não posso arcar sempre. Mas sinto pena. Empatia. Lembram o que significa? A gente se colocar no lugar do outro? Ver uma criança sentir fome, se preocupar com o irmão?

Pois é. Não sei se a mãe é honesta, se trabalha de fato ou engana o Pedroca. São coisas que não consigo avaliar. Mas, o que dá para avaliar é aquela criança que deveria estar na escola, com um enorme sorriso no rosto, bem alimentado, vivendo uma infância de direito e jamais pedindo esmola e comendo metade do lanche ganho para guardar o resto para os irmãos...  Ele não devia estar desejando os restos da embalagem do meu lanche....

É isto o que me deixa indignada. A fome me deixa indignada. A miséria me deixa indignada. A desigualdade me perturba. Não venham me dizer que deveria estar dividindo minha casa com mais vinte pessoas, que não devia estar usando um celular moderno..... Isto não tem a ver com ideologias, com socialismo, com comunismo, com ismo nenhum. Tem a ver com empatia. Tem a ver com lamentar a infelicidade de quem não teve as mesmas chances, as mesmas oportunidades. Tem a ver com se indignar pelos motivos certos...

Eu fico indignada todos os dias pelos motivos que acho certos. Pela desigualdade de oportunidades, pela fome, pelo racismo, pelo machismo, pela luta de classes, pela necessidade absurda de algumas vozes terem que berrar para se fazer ouvir. Eu fico indignada pela falta de respeito, pela falta de consideração, pela mulher que apanha calada, pela criança que é explorada, pelo dinheiro publico jogado ralo abaixo. Isto me deixa indignada. Uma criança tocando um homem nú não me preocupa se ela estiver bem orientada. Eu poderia ser esta mãe. Tranquilamente. Não fui. Mas, poderia.

Eu sei que choca ler e surpreende quem pouco me conhece. Mas, quem me conhece bem sabe que vergonha eu tenho da fome da humanidade, da ignorância a que ela é submetida, da hipocrisia que a sustenta. Pior que uma criança exposta a um corpo nu é uma criança cujo pai espera ela dormir para satisfazer seus desejos nos sites online cheios de pornografia infantil. Para isto não há perdão!