quarta-feira, 4 de junho de 2014

A MENINA QUE HABITAVA AS NUVENS



                                            

Ela sempre habitou as nuvens. Desde pequena, muito pequena. Não era difícil habitar as nuvens. Mesmo quando brincava com seus amigos imaginários ou seus preferidos entre os personagens dos desenhos infantis que vinham para a diversão, sempre lhe faziam companhia nas nuvens. Lá não haviam portas batendo, nem gritos roucos, nem copos se quebrando. 


Havia nas nuvens um silêncio mágico, daqueles de fazer as músicas que cantarolava ficarem mais bonitas, mais alegres. Lá podia brincar com seus poucos brinquedos, sua boneca preferida cujo braço teimava em desencaixar a todo instante. Lá as nuvens tinham cheiro, tinham sabores. Cheiro de talco, sabor de infância.

Enquanto crescia as brincadeiras mudavam. Com giz na mão foi professora, com pedaços de durex fazia curativos tal qual enfermeira. Um pano de prato amarrado no cabo de vassoura a fazia girar loucamente como a porta bandeiras  da escola de samba e uma blusa branca da mãe virava jaleco de cientista. Mas nunca brincava sozinha. Estava sempre acompanhada pelos seres de sua imaginação, cada amigo um nome diferente. E sempre nas nuvens. Nuvens com cheiro de talco, nuvens com sabor de infância.


Nas nuvens era feliz e ainda que em terra firme, continuava a habitar as nuvens. Ali ninguém sofria e todos eram amados. Fazia sua lição de casa, que se tornava mais fácil quando feita nos chumaços enevoados e fofos, todos em formas sempre diversas. Havia nuvens com forma de tudo: de castelo, de cãozinho, de coelho, de boneca, de pipa, de casinha. Sua nuvem predileta tinha formato de Papai Noel, pois adorava o Natal nas nuvens, era sempre menos barulhento que o Natal fora delas. E lá não se quebravam os copos.


E crescia ainda mais e as nuvens ficavam cada vez menores. Partia a procurar nuvem maior, mais espessa, em formato de biscoitos de Natal, porque eram as mais bonitas e as melhores para se habitar. Lá as portas não batiam. Ninguém gritava.


Então fez um trato com os céus, ia parar de crescer. Para poder habitar as nuvens e nunca mais ouvir os gritos roucos. Mas lhe disseram que era impossível, que crescer fazia parte da vida e que portas batendo iam lhe deixar mais forte. Copos quebrando também. E os gritos roucos. Quis a menina então ludibriar o destino e ser sempre criança nas nuvens, apenas lá. As nuvens em forma de biscoito lhe pareciam cada vez mais distante e seu acesso se tornava cada dia mais difícil. Os gritos roucos retardavam sua chegada. Mas ela não desistiu de habitar as nuvens. 


Com a idade buscou para si uma profissão e dela fez seu ganha- pão. Gostava do que fazia para viver, mas ainda assim, não podia trabalhar nas nuvens. Fez outro acordo com os céus, iria sempre levar um tantinho das nuvens consigo para onde quer que fosse. Isso a faria sorrir, se houvessem gritos roucos ou portas batendo.


Foi fácil enfrentar o dia a dia, agora que tinha um pouco das suas nuvens consigo. Não ligava para os copos quebrados, pensava na alegria que as nuvens traziam junto de si, os sorrisos, as canções da infância, os personagens dos desenhos, todos perto dela, o tempo todo. Não era fácil quando os personagens tinham que dar lugar aos semblantes sisudos dos adultos mal humorados de seu cotidiano.  Tampouco quando seus amigos imaginários eram substituídos pelo chefe carrancudo ou o pai infeliz. O cheiro de álcool, a lembrança do fumo, os sentimentos tristes todos ela afundava na maciez das nuvens que carregava no bolso. Mas os gritos roucos eram difíceis de calar. Quase não podia dormir.


Conheceu o homem de sua vida e quis levá-lo às suas nuvens. Ele lhe prometeu ser fiel e fazê-la feliz, mas riu das criaturas imaginárias e do seu lugar fofo e perfumado com forma de biscoito de Natal. Não demorou e a casa transbordava dos gritos agora felizes das crianças a derramar o vinho do pai à mesa. Eram várias vozes, uma para cada criança, todos filhos a quem ela ensinou amar as nuvens. O barulho à mesa, a bagunça ao escovarem os dentes, os tropeços nos brinquedos espalhados pelo chão, calavam os gritos roucos de sua infância, fechavam as portas que batiam, salvavam os copos que quebravam. E ainda assim, quando só, não abandonava o hábito de habitar as nuvens fofas e brancas, cheias de magia ao luar. Nas nuvens buscava a paz que lhe faltava ainda que tivesse tudo. Cobrava-lhe a vida ser crescida sem saber que a menina grande só cresceria ao pisar diariamente naquelas nuvens, etéreas e cheias de mistério, por toda vida ao manter viva a criança dentro de si. Era agora uma criança grande, cheia de crianças menores a levar ao paraíso, ao lhes ensinar a ver cada amigo imaginário a sua espera, em uma nuvem a cada esquina. Seus filhos não ouviriam as portas a bater, nem os copos a quebrar, tampouco vozes roucas a lhe tirar o sono e a paz. Não seus filhos. Com seus lápis coloridos iria ajudá-los a pintar a vida, que quando sua só tinha uma cor. 


Quando suas crianças já se recusavam a pisar todo o tempo nas nuvens que ela habitava, sentia o corpo fraco, mas viva a mente que lhe reunia forças para encontrar, perdidas em um bolso qualquer de seu vestido, as nuvens que por trato com os céus carregava. Os músculos resistiam, mas a lembrança acariciava seus pés, de névoa fofa e branca cheirando a baunilha  como sempre se lembrara. Ainda podia rir das piadas, ainda podia cantar as canções, mas recusava-se a manter as portas batendo, os copos de seu passado quebrando frágeis, as vozes todas roucas o tempo todo lembrando-lhe  porque preferia habitar as nuvens. 


O homem que sempre amara postou-lhe um beijo carinhoso em sua testa, e ela ouviu um Eu Te Amo sincero e contundente. Mesmo que ele nunca reconhecesse, eles sempre dançaram na maciez das nuvens e ela sempre o arrastou para aquele mundo mágico que ele recusava admitir. Ela o fez habitar as nuvens sem saber. Porque nas horas difíceis que tiveram foi nas nuvens que encararam os perigos, os medos, as decepções. Talvez ele nunca tivesse percebido, mas se ela não tivesse habitado as nuvens, talvez não tivessem resistido a todas as vozes roucas, a todas as portas batendo e aos copos que quebravam ao seu redor. Foi descalça pisando nas nuvens que criou filhos fortes e felizes para criarem outros filhos que brincariam a qualquer momento em suas nuvens. E, com sorte, eles jamais ouviram portas a bater, vidros a quebrar, vozes a fazer tremer suas mãos. 

Em seus últimos suspiros desejou que a morte a encontrasse de pés descalços na brancura etérea, que só conhecia vozes familiares, felizes, amorosas. Sabia que por habitar as nuvens, aqueles a quem abandonava por hora chorariam lágrimas com o sabor de um passado feliz, ouviriam os gritos de alegria de uma vida plena vivida e dividida  entre a realidade, o brilho e a leveza das nuvens que possuíra. Pudera, afinal, ser a menina alegre que misturava seus desejos aos seus sonhos e que nunca cedera aos copos quebrando, às portas batendo, aos ruídos loucos que a enlouqueciam. 

Pode, enfim, descansar em paz.......

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