segunda-feira, 25 de maio de 2020

Duas Varandas




Eu moro há 31 anos no mesmo edifício. Nele, estaciono meu carro na mesma vaga, pelo mesmo tempo. Do meu carro de hoje ou da antiga perua escort sw, ao estacionar e descer do carro a mesma visão: as diversas varandas dos apartamentos de fundos do Julieta. Em uma delas, frequentemente a mesma visão: a de um sorriso sempre aberto e sincero. Sempre um bom dia! Uma boa tarde! Muitas vezes uma boa noite!

De quando eu estava grávida, vinham desta varanda, conselhos sobre tomar sol, oferecimentos de ajuda caso se fizesse necessário, desejos de um bom parto em São Paulo. Já com o Bruno nascido e de volta à Vitória, adorava encantar-se com ele (como se ninguém soubesse o quanto ela amava crianças). Foram tantos encantos, chamegos com meu filho e os outros bebes do edifício, de uma geração que foi se formando para encantá-la: Flávia, Wantuil, Bruno, Lorena, Guilherme, Victor, Aline, Júlio (que depois de tantos anos acabou se tornando seu médico de imagens), Júnia, Maria Victória, Caio, Fabiana, Fabíola, Fred, Luíza, Bianca, Gustavo e tantas outras crianças cujo nome vou esquecer. E não sei se eles cresceram com ela e seu “Mozão” ou se ela é que cresceu com eles. Ela sempre foi uma espécie de imã para atrair crianças.

O Bruno foi para a escola e eu abri meu buffet. Eu já não tinha tempo para curtir toda a vizinhança, mas ao descer do meu carro, daquela varanda não cessavam os avisos para que eu não trabalhasse demais, de que as caixas estavam muito pesadas para minha coluna e, a parte mais divertida era sempre ela me perguntando com cara de menina levada se tinha sobrado salgadinhos e brigadeiros de fim de festa, sempre com a desculpa de que eram para o Mozão. E, inevitavelmente eu fazia uma parada estratégica no primeiro andar para deixar um pratinho.. e seus olhos brilhavam: até aí ela era mais criança, como gostava de um brigadeiro, de um pedaço de bolo. Daquela varanda também vieram alguns dos melhores elogios ao meu menino, sobre como ele educado, estudioso, bem comportado.

Mas, aí a vida, sempre ela, acontece e nos desvia das coisas que mais gostamos de fazer. O buffet foi crescendo, os trabalhos em finais de semana iam até a madrugada, eu só entrava em casa correndo e saia mais correndo ainda. As festinhas nas escolas de segunda a sexta e o fim de semana corrido, só me permitiam tempo para meu filho e meu marido. E assim, descuidando de quem cuidava de mim, nossos encontros eram apenas para deixar o salgado ou o bolo com ela, às vezes dentro do elevador. Não me pude permitir viver muita coisa ao seu lado até que seu Mozão já estivesse muito doente, e nem saber que ela sofria calada sua doença para que seu grande amor se fosse, sem o sofrimento de vê-la doente também. Que outra mulher calaria seu câncer por tantos meses, só para se dedicar integralmente ao marido, por quem tinha adoração, e que já não guardava esperanças de recuperação? Somente a dona daquela varanda…

Foi somente aós sua cirurgia que voltamos a nos aproximar. Eu fechei meu buffet e passei a trabalhar em casa com pintura de enxovais. Meu tempo passou a ser mais flexível e ela adorava ver meu filho subindo ou descendo o elevador e perguntar sobre ele, saber de sua banda, ficar louca com o cabelo comprido dele, vê-lo ir ao primeiro estágio, ao primeiro emprego.

E foi sua doença, a tristeza do luto, as ocupações de meu filho e as minhas pinturas que me aproximaram novamente da dona daquela varanda. Agora eu podia acompanhá-la mais para um café e um pedaço de bolo. E quando a doença e a quimio voltaram, tive a sorte de poder estar ao seu lado. Eu digo sorte, porque eu aprendi mais com ela nestes últimos seis ou sete anos do que em boa parte da vida.


Ela ia para as consultas, os exames, as químios, com o mesmo sorriso no rosto com que ia comigo tomar café no Shopping Jardins ou Centro da Praia e não perdoava o fato de eu convidá-la para um café e tomar água ou suco. Eu era a sua amiga de ir tomar café que não tomava café. Ela ria com isto. E era nestas horas, ou nas que eu ia em sua casa, que eu ficava ouvindo suas inúmeras histórias sobre sua família, seus pais, seus irmãos, a casa em Milho Verde, a afilhada do coração, os seus tempos de banco, de fazer hora extra sem receber para ajudar uma colega, de adorar esparramar brinquedos no chão para brincar com os netos das amigas. Gostava de contar também sobre quando fez psicologia, do que aprendeu, de como era ser a mais velha da turma. Ainda queria ficar boa de vez para trabalhar como voluntária, onde dela precisassem.


A dona desta varanda falava de tudo e fazia tudo com intensidade, com alegria, com energia. Mesmo diante de resultados de exames nada animadores, ela levava em seu coração a certeza de que era só mais uma fase a ser superada. Tinha uma fé inabalável e uma vontade de viver inacreditável. E se eu fizesse cara de preocupada, tinha a cara de pau de me chantagear: se for para se preocupar não deixo você ir mais ao médico comigo! Não te conto mais nada!!

A dona daquela varanda que eu vejo logo que desço do carro dizia que queria morrer andando na rua. Caminhando no sol, carregando algum pacotinho de supermercado, de preferência com alguma boa oferta dentro dele. Como uma atriz a morrer no palco atuando. Mas, a pandemia não deixou.

A varanda ao lado da sua, pertencente a outra grande amiga por muitos anos, está ocupada a pouco tempo por outra moça que nós também aprendemos a amar. Gentil, amiga, atenciosa e linda, foram suas primeiras palavras para descrever a nova vizinha sempre pronta ajudá-la se fosse necessário. E então, esta moça se casou. Do começo deste ano para cá, a dona da varanda tornou-se ainda mais fã de sua varanda ao lado. A moça se casou e trouxe para o andar o convívio com um jovem alegre, solícito, simpático e músico.

Este rapaz fez da dona da varanda à direita a mulher mais feliz e apaixonada e da dona da varanda à esquerda uma nova mãe, como ele gostava de chamá-la Adorava cozinhar e levar para ela “um tantinho” para ela experimentar. Uma carninha, uma polenta, sempre um mimo e um largo sorriso, tentando poupar qualquer esforço desnecessário vindo da nova “mãe”. Fez até uma serenata para ela, que presa em casa pela pandemia, ficou encantada com o gesto, que encantou a muitos outros moradores também, isolados neste momento.

E assim, como um furacão, o dono do coração da esposa e do coração da mãe emprestada acabou ganhando também meu coração. Nos últimos meses, ao estacionar meu velho carro e dele descer, eu já não tinha apenas um aceno da varanda, tinha dois. Neste tão pouco tempo, não raras vezes, me vendo abrir o porta-malas cheio de compras do mercado, o rapaz descia correndo para me ajudar a carregar os embrulhos até o elevador ou até a porta de casa. E aproveitava para me perguntar como estava a saúde da vizinha de varanda e se podia ajudar em qualquer outra coisa ou apenas dizer como estava apaixonado, como gostava do prédio, como era bacana o trabalho do meu marido como síndico, como os funcionários daqui eram “gente boa demais” e como a vizinhança aqui era legal.

Foi em uma sexta feira que levei a minha amiga ao pronto socorro. Não sem antes ela me apontar na mesa de entrada da casa, que havia acendido uma vela pelo meu filho por causa da pandemia no Pará. No hospital, depois dos exames, deixou comigo suas alianças e eu disse que ficariam bem guardadas, esperando por ela voltar. A última coisa que disse para ela, antes de subir de elevador para a UTI cardiológica foi: Você vai ficar bem! Te amo! Te vejo daqui a pouco e vamos sair para tomar um café! Ela já respirava com muita dificuldade, mas fez o enfermeiro parar de girar a maca para poder olhar para mim e me dizer: Claro! Pode me esperar! Ela mal podia falar..



Só pude vê-la depois disso por chamada de vídeo, mas ela talvez já não me ouvisse, nem soubesse o tanto de amigos que tinha rezando por ela. E, quase uma semana depois, só pude me despedir dela por uns poucos minutos, com uns poucos amigos e parte da família, o que foi para mim, uma destas rasteiras da vida. Não bastasse perdê-la, ainda tínhamos que fazer sua despedida sem o tanto de amigos à sua volta, logo ela, que conhecia e era querida por tantos…

Quis o destino que a dona de um largo sorriso, alegria contagiante e um coração cheio de uma bondade e caridade imensas de uma varanda e o jovem esfuziante e gentil da varanda vizinha deixassem a todos nós no mesmo dia, tornando insuportável a dor de todos os que conheciam, a um, ao outro ou ambos.

Passaram-se uns poucos dias e, com ou sem pandemia, alguns problemas ainda me obrigam a ir para a rua. Mas, dias vão se tornar semanas, as semanas, meses e outras estações irão chegar. Uma certeza fica para mim: eu nunca mais vou descer do meu carro e olhar para as duas varandas com a mesma alegria no coração. Mas, vou esperar que tanta tristeza se torne uma saudade boa, cheia de recordações incríveis e bons exemplos destas duas pessoas e sempre ser grata por ter tido a honra de cruzar seus caminhos....

Um comentário:

  1. Lindo texto,que triste mas procure lembrar deles nas coisas laegres e boas,pq e isso que levamos daqui as boas amizades e as lembranças

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