quinta-feira, 21 de março de 2013

Emílio e a Melhor Lembrança.....



Acordei e logo cedo pus-me de luto. Seria um dia difícil para mim, à espera do resultado de um exame médico que me diria se o que eu tenho tem cura ou poderia me matar mais rapidamente do que eu poderia esperar. Mas, ao ver pela manhã as notícias, um dia difícil ficou ainda pior. Li sobre a morte de Emílio Santiago. Há dias, mesmo com minha vida conturbada e cheia de dúvidas, venho acompanhando pela imprensa seu estado de saúde. 

Não, não sou uma pessoa mórbida, tampouco uma destas pessoas que fica policiando a desgraça alheia. No entanto, Emílio Santiago para mim era uma destas pessoas como aquelas que andam pela sua casa, sem cerimônia. Entre CDs e DVDs, sua voz faz parte do meu dia a dia, acompanha minhas alegrias e tristezas, meus êxitos e minhas derrotas, no som do carro ou da minha residência, bem como  naquele meu inseparável mp3. 

Pouco mais velho que eu, sua voz incomparável embalou os meus primeiros anos de namoro, depois de noivado e, finalmente, levou-me ao altar. Desde muito cedo acompanhei sua carreira nos festivais, e sempre fui de seu trabalho, mesmo quando ninguém ainda sabia quem era Emílio Santiago.


Logo Agora




Guardo comigo uma lembrança agridoce deste cantor ímpar. Paulista, morava há apenas tres meses em Vitória - Espírito Santo  (já se passam quase vinte e cinco anos então), quando meu marido tomou conhecimento de que Emílio Santiago faria um show em Jacaraípe - Serra, município da Grande Vitória. Eu estava grávida de sete meses, com uma enorme barriga e uma vontade imensa de ouvir o meu, então, cantor favorito. Desde que viera morar em Vitória, não havia tido ainda, oportunidade de assistir qualquer show, coisa que morando em São Paulo era relativamente comum.

Inexperiente quanto aos eventos na cidade, arrumei-me para um evento social, de acordo com um show exibido em um clube de beira de praia ( o extinto clube Rivieira em Jacaraípe ). Lá chegando, com certa antecedência, como sempre foi o nosso hábito enquanto casal, logo na entrada comecei a sentir-me um tanto constrangida. Circulando por entre as mesas do clube, uma profusão de paetês, longos, brilhos, jóias e afins que me deixou um tanto quanto desconcertada. Mesmo habitué de ambientes paulistas, nunca havia presenciado tamanha pompa entre os presentes, mas procurei relaxar e esperar que, embora não parecesse estar vestida adequadamente, pudesse aproveitar o show da melhor forma possível. À medida que as pessoas chegavam, eu percebia que todos conheciam todo mundo, naquele show a nata da sociedade parecia estar presente e, eu e meu marido parecíamos peixes fora do aquário.Todos se cumprimentavam, todos se conheciam, e  nossa mesa era a única ocupada apenas por duas pessoas.


Quando o sinal tocou avisando que o show iria começar, aprumei-me na cadeira e coloquei-me a postos para aproveitar o melhor do que o melhor poderia oferecer. No entanto, a bagunça em torno de nós continuava e meu marido, menos crédulo do que eu, previu que aquilo não iria terminar bem.  

O show começou e um muito simpático Emílio Santiago adentrou ao palco cantando Dilema e Cadê Juízo. Ao final das músicas e ainda, com muito barulho vindo da platéia, ele educadamente apresentou-se e falou um pouco sobre o álbum Aquarela Brasileira.
Educadamente ( e, confesso, meio constrangido), ele pediu um pouco de atenção à platéia. 

Naquela noite eu conheci o significado da expressão vergonha alheia. As pessoas à nossa volta confraternizavam como se não houvesse ninguém no palco. Falavam em voz alta, cumprimentavam-se, elogiavam seus vestidos, sapatos, cabelos, perguntavam dos filhos.... um horror. Eu meio que sentia vontade de levantar o braço e dizer: - Emílio, canta para mim, eu e meu marido estamos te ouvindo!!

Para meu agrado, vieram em seguida no repertório, Eu e a Brisa e Prá Você, dois clássicos, destes para se ouvir de joelhos. Embora o ruído tivesse diminuído, ainda estava longe de ser o ideal, e alguns homens, destes que só vão a estes eventos carregados pelas mulheres luluzinhas que precisam bater ponto nos lugares badalados ainda falavam num tom de voz que quase cobria a magistral interpretação. Neste ponto, meu marido, sábio como sempre profetizou: neste pé, o cara vai ir embora antes de terminar o show!

Eu não    queria    acreditar. Uma   voz    perfeita, com    um acompanhamento prá lá de perfeito, com músicas incríveis e ninguém parecia se importar. Não sei para os outros, mas para nós, comprar aqueles ingressos não tinha sido barato. À beira de dar à luz, toda despesa era computada milimetricamente e os ingressos para o show haviam sido um mimo inesperado do meu maridaço para mim, e em off, pago com sacrifício.

Eu Sei Que Vou Te Amar



Eis que, em um ato teimoso, Emilío entoa Eu Sei Que Vou Te Amar, música que escolhi para tocar no momento em que troquei alianças com Afonso em nosso casamento. A letra desta música para mim é meio sagrada ( salve Vinícius!), a interpretação de Sir Emílio também. Em minha concha quase impenetrável, ouvi a  melodia toda sem quase perceber o meio tumulto que havia se armado no salão. De mãos dadas com meu marido, foi um momento que jamais esquecerei. Quase como se ele cantasse apenas para nós dois.

De fato, quando ele terminou a música, foi quando pude perceber o quanto ele estava irritado com a falta de respeito do público que havia pago para assisti-lo. Até então, embalada pela melodia e uma voz prodigiosa, não havia percebido a algazarra, o borburinho, o falatório. Então, ele começou a cantar Retalhos de Cetim e  Sufoco ( grande ironia ) e, na metade da música então, vencido, ele desistiu.  Pediu desculpas àqueles que haviam pago o ingresso para ouvi-lo e saiu do palco. Não voltou mais. Foi vaiado, criticado, mas eu o entendi. Ninguém com seu talento merecia ser tratado como um evento social. Ninguém com seu talento merecia ser ignorado. Nem preciso dizer que saí do Riviera decepcionada. Não com o cantor, que demonstrou paciência até demais, mas com a insensibilidade das pessoas, a falta de educação e respeito da chamada alta sociedade.

Misty



Passaram-se vinte e quatro anos e nunca mais houve oportunidade de vê-lo novamente em um show ao vivo. Comprei seus CDs, seus DVDs, toquei-o diariamente ( o último DVD comprei em dezembro para dar de presente ao meu marido de Natal - Só Danço Samba - executado até março presente à exaustão no blu-ray aqui de casa), dancei ao som de sua voz com o homem com quem me casei e amo tanto, e, assim, Emílio Santiago passou a ser mais um no meu convívio diário, alguém com quem eu quase chegava a falar ao final de cada canção. Muito antes de qualquer entendido dizer que ele era uma grande voz, eu já o cultuava: por sua afinação, melodia, sua educação, sua cortesia. Pelo ser humano que ele parecia ser em suas entrevistas, por suas opiniões, e, principalmente por, como sempre neste país, não ser valorizado em vida. Todo mundo por aqui quando morre vira santo, vira ícone, vira o "maior" na sua especialidade. Emílio Santiago era o maior muito antes de morrer. Sempre foi o maior. O  maior cantor, o maior crooner, o maior intérprete. Danem-se agora aqueles que, finda a vida, exaltam o ser humano pelo seu feito maior, lembrado somente porque ele já não está mais aqui. Danem-se aqueles que viram a notícia do óbito e sentiram-se obrigados a dizer RIP Emílio, como poderiam dizer qualquer outra frase de efeito. Que mencionaram o pesar só porque ele está nos TTs ou é assunto no Facebook. Danem-se todos estes. Emílio Santiago merecia mais do que isto. Merecia ter sido reconhecido em vida. Merecia ter tido suas gravações tocadas nas rádios, nos programas de tvs, merecia que todos soubessem que ele era o dono da voz. E ele era, de fato, o dono da voz. Talvez sejam necessários cinquenta anos para que ele seja reconhecido como tal, para que digam que ele foi o maior intérprete da música popular brasileira nos anos 80/90 e em todos os anos seguintes. Mas no meu coração, ele já faz falta. Ele, que havia criado um selo seu, e pretendia gravar outros DVDs pela Santiago Music, teve sua voz calada antes do tempo. Ele, para a grande maioria das pessoas daqui uns dias será apenas mais um cantor, alguém de quem as pessoas vão se lembrar ocasionalmente. 

Não para mim. Para mim vão ficar Bananeira, Olha Maria, Beijo Partido, músicas de 1976,77, Nega, Trocando em Miúdos, Logo Agora de 1979, Pelo Amor de Deus de 81, Ronda e Sampa de 88, Ela Disse-me Assim e Esses Moços de 1989, Alguém Como Tu e Verdade Chinesa de 90, Mulher, O Mundo É Um Moinho, Flamboyant ( 91, 92, 93), além de Cadê Juízo, Alguém Como Tu e Viagem ( de 1995 e 96), Dias de Luna, Misty e Saigon ( 97/98), entre tantos e tantos outros sucessos em sua inconfundível interpretação. Sambas canção, boleros, música popular, bossa nova, samba enredo, Emílio cantou de tudo um pouco e, em tudo, foi o melhor. Fez a quem não viveu em passados anos, conhecer sua obra, trouxe a bossa nova aos mais jovens, reviveu o bolero aos que mal chegavam aos trinta anos. Cortejou Cartola, João Nogueira, Dick Farney, Lupicínio Rodrigues, Carlinhos Lyra. Nomes que estariam esquecidos não fosse seu desejo em gravá-los e perpetuá-los. 



Cadê Juízo



Por estas e por outras, recuso-me a dizer Rip Emilio, como todos os outros nas redes sociais. Recuso-me a dizer que você foi um grande cantor, que o país vai sentir sua falta. Isto me faria igual a todos. E, no que me diz respeito a você, Emilio Santiago, não sou igual a todos. Em minha casa, você continuará a cantar, por todo o sempre, nos almoços de domingo, ao cair da tarde enquanto volto do trabalho e enquanto faço a janta, ao final da noite, na companhia de meu amado marido, no som do carro, enquanto circulo por Vitória fazendo as coisas que sempre faço. Em meu mp3, naquela horinha livre esperando ser atendida pelo médico ou no supermercado. Será ao som de sua voz que continuarei arrastando a mesa da sala para dançar Misty com Afonso, como na época em que o conheci. 

Talvez este seja o imenso legado de um grande artista, a melhor homenagem que se possa fazer a um talento tão pouco reconhecido. Torná-lo eternemante vivo em nossos corações, ouví-lo simplesmente como se ele estivesse sempre lá, para nós, sem sentir apertar o coração pela ausência. Reverenciar sua existência com o que você soube fazer de melhor: cantar e nos encantar com suas interpretações. 

Não vou negar que derramei uma e outra lágrima quando soube da notícia. Não vou me privar de me peniteciar por  ter desejado que o tempo, senhor de todas as coisas, fosse contigo mais generoso do que com tantos indivíduos asquerosos e não merecedores de nossa convivência terrena, naquela máxima batida que parece dar aos melhores menos tempo do que aos outros, não tão merecedores.
Nem vou dizer que não lamento porque no próximo Natal não terei outro DVD seu para nos alegrar, para que eu possa dar de presente ao meu amor.  Não, dizer tudo isto é lugar comum. Basta apenas que eu te coloque para cantar no som do carro, enquanto vou para o médico, saber a quantas anda a minha saúde. 

Algumas pessoas tornam-se eternas pelos seus feitos. Você, Emílio Santiago, será para mim e muitos outros, assim, eterno.  Sua voz será meu refúgio e minha morada, sempre, enquanto eu viver. Esta é minha homenagem para você!

Até mais amigo!

 

3 comentários:

  1. Bela homenagem a este seu grande amigo, Dé

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  2. Linda homenagem, vc escreve com uma poesia ímpar, querida.

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  3. Três anos depois da partida, ele ainda canta em minha casa. Achei seu texto "por acaso" e ele me contempla também, nessa homenagem que é quase uma declaração. Que possamos perpetuar de alguma forma essa admiração para que não caia no esquecimento!

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