quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A Geração EU


Ou selfie, se você preferir usar a língua inglesa. O nome não importa tanto quanto a importância que tem o estrago que ela irá causar na humanidade daqui para frente.

Quando foi que perdemos a noção de coletividade? Quando foi que resolvemos deixar em casa o coração para cruzar com crianças com fome e não nos comovermos ou vermos uma velhinha atravessar a rua com dificuldade e não ajudarmos? Quando foi que nos esquecemos de segurar a porta para o próximo ocupante do elevador ao sair dele ou de dizer bom dia ao porteiro porque estamos concentrados demais em dizer bom dia ao mundo pela rede social?

Aliás, este é um modo interessante de ver as coisas. Já escrevi em outra postagem minha no blog sobre o Mundo Encantado do Facebook (Ver aqui), onde todos são politicamente, ecologicamente e socialmente corretos, lindos, felizes e realizados. Salvam-se cãezinhos, bichinhos à beira da extinção,  amamos todos os que se foram, todos os que estão vivos, todos os que estão por nascer. O amor e a decência permeiam a timeline do Facebook feito abelha atrás de mel. Uma maravilha. Isso, claro, quando nos referimos a nós, seres intelectualmente completos, porque afinal estamos falando do EU. 

Mas parece que toda esta afetividade só existe para a primeira pessoa do singular, ou no máximo, quando se comenta alguma coisa postada por alguém íntimo, quando se enaltece a “fofura” alheia de alguém que sabem, também vai “encher nosso caminhão de areia”. Porque quando vão responder a uma postagem generalizada, quando vão deixar sua colaboração, opinativa ou não sobre algum fato, artigo publicado, quando o pronome pessoal vai de “EU” para “ELE, ELA ou ELES” a coisa muda de figura. Quase tão radicalmente quanto é absurda tanta felicidade plástica. 

Interessante acompanhar comentários  nos artigos. Observe. Vá lá. Faça seu exercício. Teste sua paciência... Pode ser qualquer assunto. Pare em um artigo sobre futebol. Ou sobre religião. Pode ser economia, política, celebridades, talvez algo sobre escolas, o ebola, crianças para adoção. Vamos, me ajude a escolher um tema. Cinema? Séries de tv. Música, compositores, jardins, a Bienal do Livro, o novo carro da Ford, você escolhe. Tanto faz. A geração Eu está pronta a ignorar ou detonar. Perceba. Ou você encontra uma série de “likes”, “curtidas”  e “coraçõezinhos”, acompanhados ou não de “OMG!”, “Adoro!”, “Né?”, “Concordo”, “Lindoooo”  e outras expressões tão monossilábicas quanto inférteis à uma saudável discussão ou a detonação é livre e irrestrita e, em geral, sem qualquer reflexão. Querem que a moça se dane porque certamente é puta, o artista lindo tá na cara que é gay, o ebola devia vir para o Brasil e matar todos os políticos, todos os torcedores de tal time são racistas, todos os compositores de bossa nova são comunistas, disseminam  o ódio a judeus, islâmicos, negros, brancos, amarelos, loiras, gordos, baixinhos, funkeiros, pobres, ricos, conservadores, liberais, corinthianos , palmeirenses, santistas e são-paulinos, ou seja, sobra para todo mundo.  À geração EU resta mesmo é achincalhar. Funciona assim, se não diz respeito a mim, não me interessa ou não é bom suficiente para que eu pare dois minutos antes de descarregar toda a raiva do mundo para avaliar se isto é mesmo necessário.

A geração Selfie ( vamos afinal acompanhá-los e sermos chiques, “Divas” talvez....) não tem tempo para nada. Está sempre atrapalhada, correndo e cansada, provavelmente de tanto ter visto os pais se matarem de trabalhar para que hoje eles fizessem parte de tal geração fundamental à existência da humanidade.  Eles estão sempre exaustos e nunca é justo não terem tempo ou disposição, pois afinal há tantos vídeos de zoação com cãezinhos e manés caindo de um barranco que eles nunca vão podem curtir. Também é uma crueldade da natureza não ter internet à disposição no trabalho porque ele vai ser o último a saber, ao final da noite, quem afinal foi o finalista do BBB ou o assassino da novela das oito ( aliás das nove, que por sinal, passa às dez horas). 

Tenho mesmo é que me apiedar de uma geração que vive achando seu chefe um “mala” porque cobra serviço pronto o tempo todo, seu professor um troglodita porque exige silêncio e respeito (??) em sala de aula, seu vizinho um chato porque vive reclamando que você ouve música alto demais, atrapalhando a todos da rua e por fim, seu pais, que não acham normal, você, com quatorze anos querer trazer seu namorado ( a) para dormir na sua casa, ou melhor dizendo, na sua cama. Aliás, preciso dizer, acho incrível e as lágrimas me escorrem pelos olhos quando leio uma jovem de treze anos dizendo que não vai mais correr atrás do bofe da vez.....

A geração Selfie gosta de textos curtos ( motivo pelo qual seus verdadeiros membros já deixaram este texto para trás há uns bons cinco ou seis  parágrafos atrás), pois não dá tempo para ler tanta coisa. É muita informação e ela precisa dar conta de tudo. Precisa ter visto o vídeo do goleiro sendo chamado de macaco, o outro vídeo da vizinha gravando atrocidades com o cãozinho, precisam sabem quem são as atrizes cujas fotos de nús vazaram na internet ( e provavelmente ver estas fotos). E, claro, vomitar umas bobagens sobre política e eleições, o assunto do momento. Então, é muito injusto ele não ter tempo para tanta atividade extra entre trabalho e estudo.

O problema desta geração é que, como tudo deve girar em torno de si, são eles próprios que definem o quanto precisam saber sobre outros assuntos para poder palpitar e ficar bem na fita. Neste quesito a geração “ Só Me Importo Comigo” se esmera. Basta um amigo postar uma bobagem sobre o candidato A,B,C ou D e ele sai compartilhando e destilando veneno. Pessoas atentas sabem o quão fácil é você propagar uma mentira na internet. Uma frase solta, uma foto manipulada, uma declaração “supostamente” dada, ouvida por um amigo de um parente do fulano de tal, e em meia hora isto toma uma proporção infundada. Mas, tanto faz, a geração EU só leu mesmo até a segunda frase e compartilhou porque o post já tinha umas tantas cinquenta curtidas.....


 Mas eu me apavoro mesmo quando leio um jovem desta geração postando a favor da ditadura. Pessoinhas que sequer tinham nascido quando esta barbaridade se abateu sobre este país. Quando leio coisas como: “- ...Os militar tem mesmo é que entrar quebrando tudo” (sic) ou “ Só a ditadura para dar jeito nesta porra....” (sic) – ( comentários extraídos do facebook) fico sem palavras para expressar minha indignação. A mocinha posta isto e três posts depois bota lá uma “selfie” de banheiro, fazendo biquinho, o rapaz faz a postagem e não demoro a ver um vídeo “gentil” do Danilo Gentilli, só falando coisas “gentis”..... OMG!!!!!!! ( o que é, também sei falar(???) como eles.....).


A geração EU está retratada em uma propaganda da Vodka Smirnoff, se você não viu (Ver Aqui) não perca, lá eles traduzem em imagens tudo o que eu tento dizer aqui. A geração EU quer mais é saber se seu SELFIE ficou perfeito, bem na fita, e que se dane o preço do petróleo ( não fui eu quem disse, foi o rapaz da propaganda.....).

Claro, a geração EU tem exceções, como tudo na vida. Existem jovens desta geração que sabem que existe mais do que selfies de banheiro e comentários do Danilo Gentilli esperando por eles. Garotos e garotas que não se importam de ler mais do que dez parágrafos de um artigo e prezam todo o esforço que seus pais ou responsáveis fizeram para que eles estivessem aqui e pudessem ser parte de um futuro de responsa. Não são a maioria e nem se farão ouvir com facilidade, mas já nos fazem crer que existe uma luz no fim do túnel.

A geração EU reclama demais sem nunca ter lutado por um ideal de verdade, nunca saiu às ruas para exigir liberdade, sequer conferiu a fundo as aulas de história para saber como foi. A geração EU nunca “tirou linha”, expressão usada por nós mais velhos para a paquera, nunca soube o que é “cortejar” e com certeza jamais dançou juntinho, na espera de haver outro encontro, e mais outro e um terceiro para beijar na boca. Não vai saber jamais que a espera é melhor que o acontecido, que o desejo é maior quando as coisas são mais difíceis do que beijar na boca umas quatro ou cinco garotas por noite. Esta geração perdeu por entre os “amassos da vida” a sensação da conquista, a diversão do “correr atrás”....

Esta geração perdeu tanto..... E eu lamento muito pelo que eles estão perdendo.... Lamento que ao invés de ler Machado eles busquem o resumo da obra na internet para cumprir currículo escolar. Lamento que eles tenham trocado a única dose de cubra libre que podiam pagar no bailinho por nove ou dez doses de vodka que os deixarão entorpecidos e quase desmaiados ao fim da festa, incapazes de articularem palavras entre si. Lamento que tenham trocado as infindáveis conversas entre amigos na caminhada rumo à escola pelo ônibus, não sem estarem devidamente munidos de fones de ouvido, que os isolam do mundo real, e talvez de conhecer alguém interessante no meio do caminho ( conheci tanta gente amiga assim....).

Lamento que seja tão importante para todos o corpo e seu ideal inatingível, só permitido aos que a genética favorece ou aos que podem dar-se ao luxo de usufruir das benesses da academia, do spa, da alimentação correta e às vezes cara, dos absurdos impostos pelas revistas da editora Abril, das moças que acham que são inaceitáveis se tiverem quilinhos a mais.....

A geração Eu cuida mais do corpo do que da alma. Mais da estética do que do espírito. Mais da quantidade de likes do que da amizade sincera. Esta geração, do qual me orgulho em dizer que meu filho e boa parte de seus amigos são exceção, esmera-se em ter opinião sobre tudo sem conhecer nada. Arrisco-me, mesmo sabendo que ofenderei a muita gente, a dizer que é vazia e sem propósito ( não esqueçam, não é uma generalização, há exceções).

Não sou ninguém para dar lição de moral ou tentar mudar o rumo da humanidade. Mas, se alguns jovens da geração EU chegaram até aqui ( e meu coração me diz que alguns poucos chegaram) talvez haja esperança. Mesmo que poucos, se houverem alguns dispostos a refletir tudo o que foi dito, talvez a próxima geração venha diferente. Talvez as coisas não sejam mais tão fáceis e estes meninos não reclamem por ser o mundo todo injusto com eles. Talvez eles entendam que seus pais cansaram de andar de ônibus para lá e para cá e não morreram por isto. Talvez eles vejam que seus pais não tinham tempo para tudo o que queriam e por isto passaram a selecionar aquilo que mais valia a pena. Que lutaram e muito para ter hoje a liberdade que permite a seus filhos postar qualquer porcaria na internet sem ter a polícia na porta de sua casa.....

Eu sei, sou uma velha senhora que sonha, e sonha demais... Mas quem sabe por tudo isto, de alguma forma eu possa morrer, não sem antes conhecer a geração EU que virou a geração NÓS, porque seus pais leram um dia estas poucas linhas......

Em tempo: É provável que você conheça alguém que não é desta geração, mas que foi contaminado por ela, vociferando impropérios e culpando tudo e todos por suas próprias frustrações. Não se assuste: a geração EU sempre existiu, mas nunca com tanta força e propriedade como agora. Sempre há um babaca por aí achando que é só no seu quintal que os ratos brincam....

2 comentários:

  1. Graças a Deus, não consigo pensar em ninguém de meu convívio que se encaixe na descrição... Sei que existem aos montes e vez ou outra pessoas da geração NÓS também soltam suas "pérolas" no melhor estilo EU, mas, agradeço a Deus mais uma vez, por isto não ser regra no meu convívio, mas sim, exceção.

    Beijo!

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  2. Texto perfeito. Esses dias no trabalho estávamos conversando sobre o ar condicionado e eu soltei a célebre frase de Shakespeare: Há algo de podre no reino da Dinamarca. Todas as pessoas do depto se entreolharam e me perguntaram se eu estava louca, pq estava falando de Dinamarca qd estávamos conversando sobre o ar condicionado e de onde eu tinha tirado isto. Pois é, este é o mundo em que as pessoas não leem, não se interessam por cultura e vivem imersas em seus mundinhos. Ainda bem que, como vc disse, existem exceções.

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