quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Quando Vi o Super Homem Voar.....


Rua Afonso Celso. Bem próximo à Domingos de Morais. Longe do bairro da Móoca, mais ainda do Hospital Psiquiátrico Eldorado, em Diadema, onde supostamente meu estágio iria até as 18:00 horas aos sábados, quando na verdade eu estava liberada ao meio dia. Ainda mais distante da Faculdade Metodista, no bairro de Rugde Ramos, onde a saída para a Via Anchieta tornava ainda maior o percurso de quem fazia aulas de segundas às sextas feiras à noite e, nos quatro primeiros semestres, aos sábados pela manhã. Já em períodos mais adiantados, as visitas ao Hospital Psiquiátrico eram muito mais interessantes dos que as aulas obrigatórias de Educação Física aos sábados.  Eu sempre odiei Educação Física. Minha única paixão no departamento era pelo Voleibol, mas as aulas na faculdade não incluíam jogos coletivos. Sempre penso no absurdo que foi quase não me formar por bombar em faltas em Educação Física em um curso superior de Psicologia.

Mas este post não é sobre isto. É sobre a Rua Afonso Celso. É sobre o Museu Lasar Segall. Ou, mais exatamente, naquela época, o Cineclube Lasar Segall, onde assisti pela primeira vez Casablanca, em um sábado à tarde, após o meu estágio no Eldorado. Não sinto orgulho algum em afirmar que cansei de mentir para meu pai para fazer as coisas que amava fazer. Mas, tão pouco me arrependo. Óbvio, os tempos eram outros, meu pai foi uma pessoa muito difícil de lidar e provavelmente esta experiência foi o que me tornou uma boa mãe (modéstia à parte), cujo mantra sempre foi um diálogo aberto com seu filho, fosse qual fosse o assunto, fosse qual fosse a dificuldade, para evitar que ele tivesse que viver as angústias que eu vivi. Mas isto também não vem ao caso agora.

Naquela época, 1979 ou 1980 , o Cineclube Lasar Segall tinha um jardim de inverno logo em sua entrada. Acolhedor, convidativo. A sala de projeção, pequena, não sei se resistiu ao tempo. Tomei conhecimento dela através de outra amiga cinéfila, a Sandra. Tinha pouco mais que cinquenta lugares, se tanto. Era pequena, intimista e bem frequentada. Na maioria, senhoras buscando alguma diversão nas tardes de sábado, às vezes, nas noites de sexta feira. Mas seu público alvo estava longe de ser o de jovens com 17 anos como eu.

                           Cineclube Lasar Segall - hoje Museu 


Não era obviamente, meu primeiro contato com a magia da Sétima Arte. Desde muito pequena me lembro de me encantar com a tela grande na sala escura. Minha primeira lembrança de um cinema é, por incrível que pareça, com minha avó paterna, vó Olga, com quem tive pouco contato, pois ela morreu quando eu tinha apenas oito anos. Lembro-me de ela me levar, lá pelos meus seis anos para assistir Branca de Neve no cinema e morro de rir ao lembrar que chorei rios de lágrimas quando o raio atingiu o penhasco e a bruxa enfim, acabou de forma dramática caindo em um precipício, direto para seu castigo fatal. Desde aquela época eu já devia ter uma queda por vilões interessantes. Não por acaso sou fã de Darth Vader. Isto é um fato.

Depois desta experiência, lembro-me de outras marcantes, como assistir com minha mãe em Santos ( e andar quilômetros a pé para voltar para o apartamento) Golpe de Mestre e Inferno na Torre, ambos com meu inesquecível Paul Newman, mesmo sem ter idade para isto ( eu nunca tinha idade para assistir o que queria,mas eu sempre dava um jeito!)

                                  Golpe de Mestre - 1973


Recordo-me de uma experiência amarga com minha avó Carmen, no extinto Cine Amazonas, junto ao meu irmão Mauro e meu primo Antonio Carlos, um pulgueiro horroroso onde eu tive o  "desprazer" de assistir Orca, A Baleia Assassina - não, não me perguntem, foi a época do cinema catástrofe em seu auge. Ou quando, em Santos, só Deus para explicar, eu assisti junto com meu avô João, pai de meu pai, King Kong, hoje sabendo que enquanto Jessica Lange balançava-se em desespero para livrar-se de suas amarras, meu avô devia estar pagando todos os seus pecados terrenos para satisfazer os netos. 

                                       King Kong - 1976

Mas, antes de aventurar-me sozinha nas salas escuras, foi sempre com a cumplicidade de minha mãe, também cinéfila de carteirinha, que presenciei o melhor do cinema : esperava ansiosa pelas férias em Santos, sempre na esperança de escapar com ela, já que em São Paulo isto era mais difícil acontecer e, em sua companhia, desfrutei de Kramer x Kramer, Gente Como A Gente, Aeroporto 77, entre outras delícias.
                               Gente como a Gente - 1980


No último ano do colegial, lembro-me de matar aulas na sextas à tarde com outros colegas para subornar o bilheteiro pagando inteira ao invés de meia, pois não tínhamos idade suficiente para a classificação dos filmes e assistir A Profecia ( com direito a duas colegas saindo da sala aos vômitos na cena da decapitação). No antigo Cine Ouro Verde, na maioria das vezes sozinha, sonhei com Os Embalos de Sábado à Noite, Grease, O Show Deve Continuar (All That Jazz), o lindinho Bernardo e Bianca ou me engajei com os rebeldes Norma Rae e o duríssimo O Expresso da Meia Noite. Inesquecível também foi meu primeiro Star Wars ( que na verdade, hoje é conhecido como o número quatro da saga). 

                                     All That Jazz - 1979


Algumas experiências foram tão impactantes que me lembro como se estivesse ainda sentada na sala escura, a exemplo da noite em que assisti M, O Vampiro de Dusseldorf, obra prima em branco e preto de 1931, do alemão Fritz Lang. A força da sua história e o impressionismo alemão em, provavelmente, minha primeira incursão no cinema criminal, me fez ficar dias impressionada, digerindo o tema e sua solução.

                             M - O Vampiro de Dusseldorf - 1931


Foram anos de paixão pelo cinema, entre Branca de Neve e Interestellar, minha última incursão na sala escura. Anos de embriagamento pelos clássicos de Hitchcock em salas de Circuito Cultural ou de simples deleite por um Indiana Jones cujo chapéu jamais caia de sua cabeça - pura diversão.

Não havia motivos que me impedissem de sempre escapar para ver um novo título na sala escura. Do grande e imponente Belas Artes ao simplório Cine Patriarca, na rua do Oratório, destino hoje de um estacionamento - triste fim para um local com tamanhas recordações, foram muitas as minhas incursões à magia da tela grande. Do mocinho de chapéu impecável e cigarro sempre no canto da boca, da moça indefesa de cabelos caprichosamente cacheados e olhos lacrimejantes, do vilão de olhos cheios de maldade que invariavelmente morria no final ou pagava seus pecados de alguma outra maneira. Haviam ainda os musicais. Ninguém nunca perguntava porque diabos havia uma orquestra escondida em algum ponto da rua, pronta para acompanhar Frank Sinatra ou Gene  Kelly ou Fred Asteire. Nós apenas sonhávamos. E como era bom viver aquela hora e meia onde a prostituta mais linda do mundo cantava Moon River da janela de seu apartamento e  encantava o michê mais encantador da história, na figura de um George Peppard romântico e apaixonado em Bonequinha de Luxo.

                   Audrey Hepburn - Bonequinha de Luxo - 1961


Foi então que descobri Hitchcock e seu Festim Diabólico e a sala da rua Afonso Celso passou a ser por mim mais frequentada do que nunca. Era raro encontrar companhia para aquelas sessões nos cineclubes, filmes em preto e branco, temas funestos, às vezes pesados, às vezes chorosos, a maioria de minhas amigas queria apenas dançar ao som de Grease ( que eu também amava, mas como na música, uma coisa nunca me fez anular a outra, sempre soube ser eclética como poucas pessoas são).

Mas eu tenho uma recordação de cinema inesquecível, entre tantas outras, esta não da sala do Cineclube Lasar Segall. Foi uma sessão vespertina na extinta Sala Ouro Verde ( quase todos os cinemas de rua se acabaram...), na rua da Mooca ( vocês podem não saber, mas meu melhor amigo na época dizia: Mooca é Mooca, o resto é pipoca...). Depois de gastar meus últimos centavos, certa de que voltaria a pé para casa por falta de grana para o ônibus, eu assisti, sentada nos degraus acarpetados da sala escura ( sim, já não haviam mais ingressos e eu paguei para assistir sentada no chão!) à primeira exibição de Superman.

 Cena do vôo da Superman e Lois Lane ( só achei do SBT - inacreditável!!!
 
Não dá para descrever em palavras pura e simplesmente o que foi ver Superman (Christopher  Reeve) sobrevoando os céus de Metrópolis com Lois Lane  (Margot Kidder)  nos braços, vestido esvoaçante e música inesquecível de John Williams.  Se um grampo caísse no chão naquele momento, certamente se ouviria. O silêncio era mágico. Não era como assistir todos estes efeitos especiais de hoje em dia, Avatar, 2012, ou qualquer coisa em 3D. Era mágico. Mesmo. Ninguém naquela sala havia experimentado ainda aquela sensação.As gerações seguintes não vão nunca saber o que é isto, porque sempre parece que já viram de tudo. Todo filme é apenas mais uma inovação. Hoje, as imagens devem parecer toscas, mas para a época eram uma coisa nunca vista! Nada ali havia sido visto antes. 

Não naquela sessão. Não naquele dia. Foi como ouvir um telefone tocar pela primeira vez, foi como ver a tv em cores ( sim, tenho idade para ter experimentado ambas as coisas quando eram novidade!). 

Lamentavelmente, nem o cinema é mais o mesmo hoje em dia.Lembro de filmes indicados ao Oscar há quarenta anos atrás ( Perdidos na Noite, Hello Dolly, Z, de Costa Gravas, meu preferido na época), mas não lembro qual filme ganhou o Oscar há dois anos atrás. Trilhas que marcaram minha vida, como a de Bonequinha de Luxo, Butch e Cassidy, Nunca aos  Domingos, Arthur o Milionário, Dirty Dancing, mas nem imagino qual música foi premiada no ano passado.

Não sei exatamente qual o problema, se sou eu e meu saudosismo ou se as coisas tinham mais qualidade. Só tenho certeza de uma coisa: aquelas lembranças da sala escura, com o imenso mapa de Casablanca, com Ingrid Bergman dizendo "Play it, Sam, play As Time Goes By", ali na rua Afonso Celso ou quando vi o Superman Voar, estas coisas eu nunca esquecerei.

Casablanca  -  1942


Hoje, pouca coisa me arrasta para o cinema, onde as pessoas passam mais tempo checando seus celulares do que prestando atenção ao que se passa na tela grande. É muito barulho, muita conversa paralela, muita pipoca e pouca emoção. Assisti ao desespero de um marido traído pela esposa quase morta em os Descendentes com três adolescentes ao meu lado dizendo, entre goles de coca e mordidas em um Mc Chicken  que George Clooney estava mais gostoso em outro filme que elas não lembravam o nome.  Francamente, não mereço isto. Hoje prefiro a sala escura da minha própria casa onde posso me emocionar sem um toque inconveniente de celular, sem uma mocinha com hormônios a flor da pele, sem cheiro de frango frito. Minha rua Afonso Celso hoje é aqui, em minha residência, onde faço valer cada centavo de um DVD comprado ou visto na tv paga, onde posso não reviver as mesmas emoções da antiga sala Lasar Segall, mas com certeza faço valer minhas emoções, como se o tempo aqui não tivesse passado. Aqui revejo Golpe de Mestre, Bonequinha de Luxo, Laura, Sob o Signo de Capricórnio, aqui me divirto com Indiana Jones, com Star Wars, com All That Jazz ou Cantando na Chuva. Aqui encontro filmes recentes nem tão ruins assim, alguns até mágicos como Diário de Uma Paixão, Um Crime Perfeito ou Jogo da Imitação. Pouco importa. Aqui sou dona do que assisto e nem preciso comprar pela internet um ingresso duas semanas antes para pegar um "bom lugar", mesmo que seja ao lado de jovens esfomeados e sedentos por um par de seios à mostra. 

Hoje aqui eu tenho meu próprio Cineclube, sem jardim de inverno, sem o charme das tardes de sábado onde eu deveria estar dando plantão no Hospital Psiquiátrico, mas com certeza, mais cheia de prazer do que nas salas dos Cinemarks da vida...... 
                                
                                Cantando na Chuva - 1952

 
Algumas pessoas dirão que é saudosismo e posso garantir que é, com todas as letras. Saudades de um tempo onde a sala escura era um templo sagrado, fascinante e respeitado, onde nos entregávamos com respeito, na certeza de que os poucos trocados seriam a paga por momentos de uma magia inexistente em qualquer outra arte. Não nos importávamos em saber como a cena era feita ou porque tocava música no meio da rua. Ninguém lembrava que o ator principal era um bêbado inveterado ou que a atriz tivesse passado por quatro divórcios.Ninguém procurava por fios que sustentassem nosso herói no ar, tampouco importava saber se aquela era a versão do diretor ou do produtor. 

Eu vivi uma época de magia, onde sair de um cinema incluía uma experiência além de se alimentar com hambúrgueres ou pizzas após a sessão. Nós passávamos dias nos angustiando com o incêndio no Inferno na Torre  ou com a morte de Butch e Cassidy. Cantarolávamos Hello Dolly horas a fio, porque aquilo não se via na tv, não se via em lugar nenhum.

Sinto um pouco de pena destas gerações atuais. Eles estão tão investidos de tecnologia, sabem que as orquestras não tocam no meio da rua e tampouco que homem algum voa, a menos que hajam muitos efeitos especiais. Eles jamais irão sentir o que eu senti quando falei pela primeira vez em um telefone fixo, porque afinal falam ao telefone a todo instante. É como se isto sempre tivesse existido. 

Com o cinema é igual. É como se cada efeito fosse um upgrade, algo esperado a qualquer momento. Esta geração nunca irá prender a respiração quando Lois Lane estiver em pleno espaço, nos braços do Superman. Nunca verá Star Wars com meus olhos, nunca irá se apaixonar pelo michê quase inocente de George Peppard. Sim, sinto pena desta geração que já descobriu que cinema é uma forma de atores, diretores e outros profissionais ganharem a vida. Não, nós, em minha parca idade, nem desconfiávamos disto. Acreditávamos na história sem pensar no resto. Achávamos realmente que a tela de cinema era sagrada e que lá, tudo era possível.

Às vezes, a ignorância é uma benção................


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