segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Para Kleyton......



No ano de 1985, quando eu estava para concluir meu curso de psicologia, nossa turma viveu uma experiência incomum. Meu amigo Kleyton viria a falecer no ano seguinte, vitimado pela Aids. Eu havia mudado de faculdade duas vezes ( Metodista e FEC) para conciliar horário com minha empresa empregadora e já não tinha uma turma única, visto que ao final, já trabalhando em seleção de pessoal desde o primeiro ano, tudo o que eu queria era o diploma, para poder assinar meus próprios laudos ( uma vez que aprendera meu ofício na prática). 

Kleyton cursava três matérias comigo e não em poucas ocasiões fizemos trabalhos universitários juntos. Ele era um negro de cerca de um metro e oitenta e tantos, bonito, alegre, falante, que cursava faculdade particular  porque defendia o seu sustento como modelo/ator. Vivia dizendo que queria trabalhar com crianças, na área de psicologia pedagógica. Algumas de minhas amigas ( devo dizer, era um curso, naquela época, predominantemente feminino) achavam um desperdício e o preferiam usando seu corpo. Eu nunca achei. Kleyton tinha um coração enorme e uma vocação incrível para a área. Bastava presenciar sua dedicação aos estudos. Percorrendo o caminho mais difícil, já que o mais fácil lhe rendia o sustento, testemunhei sua vontade de buscar suas origens, de ajudar crianças pobres, sobretudo crianças negras.

Meu tempo, já no penúltimo ano era curto, eu trabalhava em uma empresa que tinha funcionários trabalhando em  turnos ( Bozzano/Revlon ) e não raramente precisava chegar por lá às quatro da manhã para fazer a contratação/dispensa de funcionários deste turno. Logo, dá para imaginar, o que significavam os trabalhos em grupo para mim, já que nesta época eu passava mais tempo em condução do que produzindo ( morava na Moóca, trabalhava na Via Anhanguera e fazia faculdade em São Bernardo do Campo – para quem não conhece São Paulo, pode acreditar, era uma distância bastante absurda entre esses lugares – eu me deslocava usando ônibus, metrô e trem). Os trabalhos de faculdade eram todos meio que no tapa, já que no período noturno a grande maioria precisava trabalhar para pagar a mensalidade . Todos, menos quando os fazia com Kleyton. Encontrar com ele era como ler uma enciclopédia. Ele me enchia de informações, estava sempre cheio de ideias, meus trabalhos com ele eram sempre os mais completos. Uma noite, tarde já era, e muitos já haviam ido embora ( era comum o professor dispensar antes do horário para os alunos fazerem seus trabalhos em grupo), falávamos sobre psicologia do desenvolvimento, seu tema preferido, ou algo assim e ele me interrompeu. Me perguntou o que eu sabia sobre a Aids. Em minha presunção, derramei sobre ele as informações que tinha, em especial o que eu há tempos acompanhava haver na África.

Eu havia feito um trabalho, não havia muito tempo, em que falava sobre a Aids na África ( o tema era, naquela época, relativamente novo) e o seu abandono por estar em um território meio esquecido ( nasceu aí, Terra de Ninguém – 1998 que postei recentemente em meu blog).

"Naquele fim de mundo, onde não havia ninguém se importando com quantos africanos morriam por dia, não havia telex, telégrafo, rádio ou sinal de telefone suficiente para dar importância ao fato. Naquela terra de ninguém onde a fome, o clima, a pobreza e as doenças já dizimavam indiscriminavelmente, a Aids era apenas mais um motivo para morrer...”

Não que fizesse diferença para muitos, não que alterasse as estatísticas, não que envergonhasse a humanidade, naquela terra de ninguém, não havia gente suficiente que se importasse, não haviam  vozes suficientes para se fazerem ouvidas, não haviam  gestos possíveis, só a miséria e a morte que cercam o abandono do ser de cor escura e que tinha o destino mal traçado....." – sim, eu sempre arrumava tempo para escrever e pesquisar, acho que por isto meu curso acabou tendo um ano a mais...

Não pude continuar lendo meu texto. Percebi os olhos de meu amigo cheios d’água, lágrimas molhando o papel almaço  onde faríamos nossa dissertação. Me surpreendi, era a primeira vez que o via assim vulnerável.

Tenho que ser honesta, eu estava exausta, com fome ( passei cerca de quatro anos jantando um hot dog na porta da faculdade), anyway, precisava urgentemente de horas de sono e por pouco não perguntei a ele o que estava acontecendo. Ele falou sem que eu precisasse perguntar.

As palavras saíram lentamente. Ele me perguntou se eu era capaz de guardar um segredo, e, francamente, naquele momento cheio de sono e fome eu seria capaz de prometer a paz mundial. Mas tudo mudou quando ele começou a falar.

“Eu estou doente. Tenho Aids”. Nunca mais esquecerei estas palavras. Eu me lembro de acender um cigarro ( sim, naquela época eu fumava feito uma chaminé – parei quando engravidei, graças a Deus) e apenas ficar olhando para ele, esperando que ele continuasse a falar.

Foram as palavras mais difíceis que ouvi até o infarte de meu marido, seis ou sete anos depois. Ele me falou da sua homossexualidade – que eu sabia, mas nunca havíamos tocado no assunto. Me falou da discriminação que havia e o quanto era agradecido por eu não julgá-lo. Me disse entre um sorriso e umas lágrimas que não sabia que amar outro homem o mataria tão cedo....Só me lembro de ouvir Kleyton dizer que não sabia se conseguiria terminar a faculdade, pois era algo  que ele queria muito. 
 
Ele não conseguiu. Ele faleceu em uma quinta feira nublada, em um dia de prova de educacional (psicologia do crescimento para ser mais exata, matéria da professora Cláudia). Ele deve ter ficado feliz em saber que ninguém foi fazer a prova neste dia. Quase todos estavam em seu funeral. E a professora Wanda ( ela dava industrial, foi surpreendente seu discurso) falou tão bonito para ele. Muitos nem souberam que ele morreu vitimado pela Aids. Muitos tinham medo até de saber o que era Aids. Alguns me diziam que ele tinha tido uma infecção de origem desconhecida.  Naquele dia eu não fui trabalhar. Meu chefe, Roberto, fez um telefonema furioso ( para a minha casa, ainda não haviam celulares para o pobres mortais ), porque eu tinha dinâmica de grupo com alguns candidatos naquela tarde, mas eu nem liguei. Estava em choque. A Aids tornava-se enfim, realidade para mim e estava tirando do meu convívio diário alguém por quem eu nutria profundo respeito e admiração.

Naquele dia eu era metade de mim. A minha outra metade estava sendo sepultada e eu nem entendia direito o porquê. 

Queria ouvir de novo a voz grave que chamava meu nome quando eu meio que adormecia sobre os papéis, quando eu não tinha como continuar acordada, que me avisava: “- são 22:40hrs, só tem ônibus para a estação de trem de Utinga até 22:50 hrs”. E ficava me observando sair correndo para pegar o tal ônibus, com um sorriso meio divertido no rosto.... Kleyton foi para mim um divisor de águas. Antes e depois de sua morte. Sei que ele nunca saberá disto, mas acabei meu sexto ano sempre tendo sua determinação em mente, sempre pensando no quanto ele desejaria me ver formada e, de certa forma, espalhando meu conhecimento e minha indignação. Ele morreu em uma época em que ninguém sabia bem como tratar ou prevenir a Aids.

Hoje nós sabemos. E graças a Kleyton eu me tornei uma mulher, hoje senhora de meia idade, de cabeça aberta. Conheço como a vida de alguém  pode ser devastada pela Aids ( ou mesmo pelo preconceito pela cor) e procuro não julgar ninguém: cada um ama quem acha que deve amar, não sou eu, nem ninguém que deve julgar isto. Só acho que ninguém merece morrer por causa do preconceito, que não somos nada nem ninguém para julgarmos o coração de outras pessoas. Coincidência ou não, alguns dos meus melhores amigos/amigas são negros e alguns homossexuais – todos pessoas extraordinárias - sim, tenho ótimos amigos, thanks God!

Meu grande amigo Kleyton tinha o sonho de mudar as coisas aqui para ele e para todas as crianças que herdaram sua cor. Acho que serão necessários muitos anos até que as coisas mudem por aqui..... ou na África, ou em qualquer lugar onde haja uma criança negra ou homossexual. Por ora, fico feliz em ver as pequenas mudanças nas escolas, as pequenas mudanças em nossa comunidade. Hoje não se discute apenas a Aids na África, mas também aqui...  Minha norinha compra bonecas negras para seus trabalhos com crianças na comunidade onde dá aulas e isso faz a diferença. Ela não alisa o cabelo para que suas alunas não queiram alisar também. Isto é bem legal.

Penso no que seria sua reação se você  estivesse vivo. Ebola, mais uma barreira a ser superada. Esta postagem, originalmente falava apenas de Aids, mas seria desonesto com Kleyton ignorar um novo perigo, um novo desafio. Talvez, meu amigo, de onde estiver, possa me dizer sobre o que escrever, o que defender. Confesso, sinto-me sozinha nestas noites em que estaríamos discutindo a Aids, o Ebola,  a discriminação, a cor, o sexo. Não sei bem o que você diria, não sei bem o que você faria. Sei que não se calaria, como nunca antes se calou, mas não sei bem o que fazer, visto que sempre me vejo como uma minoria. Ou, em suas palavras, a “Deborinha que quer a paz mundial. Deborinha, deixa disto, o homem é cruel. Nunca haverá paz mundial”. Ele me conhecia bem. Eu sempre orei pela paz. Local, mundial, dos seres todos ditos humanos. O que fazer... Uma vez sonhadora..... ou como você Kleyton dizia: “ a garota que faz velório para os pernilongos  que matou....” posso te ver rindo da minha boa intenção....

Nestas horas, tristes e escuras, onde leio tanta intolerância nas postagens irresponsáveis dos supostos donos do mundo por aí, rezo para ti ao me deitar, para encontrar, talvez, quem sabe, a solução, as respostas. Ouço tua voz grave me zoando, dizendo que para tudo no mundo há um motivo  e espero, talvez você possa dizer para mim,  talvez você possa apenas indicar o caminho.

Me dói ler tantas ignorâncias acerca da tua cor, da pobreza que te cercava e que você driblou enfim, fazendo aquilo que tanto odiava, mas que ao final de tudo pagava as tuas contas: usando o teu corpo, nas fotos, nos vídeos. Lembro-me de te ouvir uma  vez dizendo: “ queria  que eles soubessem que eu sou mais do que isto!”

Ainda assim, espero você, Kleyton, me dizer o que virá a seguir.........

Estou cansada desta intolerância. Estou cansada de fingir que tudo vai bem. Estou cansada de dizer que no futuro os homens verão as coisas de forma diferente. Me sinto, às vezes, em 1986. Algumas coisas parecem nunca mudar. E nestas horas, apesar de eu não fumar há tantos anos, sinto que preciso de um cigarro. Apenas um paliativo para suportar a intolerância da humanidade.

Meu cigarro hoje é meu filho, que leva a semente da tolerância dentro de si, que faz valer meus pensamentos, que me faz acreditar num mundo melhor. É sua namorada, é o irmão de sua namorada. É meu amigo virtual. Minha melhor amiga de confidências. São todas as pessoas com quem cruzo por aí..... Gente que poderia ser cor de rosa e transar com cogumelos que para mim, não faria a menor diferença. Posso até te imaginar agora imitando um cogumelo....Era assim que você gostava de caçoar das minhas boas intenções....

Obrigada Kleyton, por ter feito de mim uma senhorinha  sem preconceitos, alguém que ingenuamente ainda sonha com a paz no planeta que habita, com a igualdade das raças, alguém que não acha que Ebola é doença exclusiva de africanos, que sabe que vale a pena abraçar alguém com Aids, que sabe que não importa a origem, qualquer doença pode vitimar indiscriminavelmente, que luta para que não exista preconceito. Obrigada Kleyton pelos risos puros, pela diversão gratuita, pelo aprendizado extra faculdade. 

Obrigada por dizer que não importava se o homem por quem eu estava  apaixonada tinha dezessete anos a mais que eu, que eu não devia ligar para o que os outros diziam. Você não ligava.Você tinha PHD nesta arte. Acreditar no ser humano, quando ele próprio não conseguia acreditar em si. 

Obrigada amigo, pelas lições de humildade e por me lembrar que eu não era a única com problemas em minha casa. Obrigada pelo apoio que você me deu e nem presenciou. Rogo apenas para que você possa saber tudo o que veio a seguir. Todas as mudanças. Que você saiba pelo  que valeu a pena lutar e que meu casamento hoje dura por quase trinta anos, quando até o padre da minha paróquia disse que não duraria nada. Você me disse um dia que o amor valia todas as apostas e eu te devo isto. Não raro me pego pensando em você. Em como você teria se divertido na festa do  meu casamento. Em como você estaria feliz em saber que eu pude ser feliz ao lado do homem que sempre amei. Em como você corujaria meu filho. A gente aprende a todo instante, com todo mundo e eu  aprendi muito com você. Você teve mais razão que o padre da minha igreja, que se negou a abençoar meu casamento. 

Você não viveu o suficiente para ver que eu lutei as suas lutas, mas eu continuo lutando. E se houver um Céu para “pessoinhas que foram cedo demais”, você certamente o está habitando. Com seu sorriso franco, sua voz grave, seu jeito meio brincalhão de ser. Se eu puder te aconselhar em algo, que seja para você voltar a dar as caras por aqui em mais ou menos trinta ou quarenta anos. Não acho que esta geração esteja preparada para por fim a qualquer tipo de discriminação. Serão necessárias mais lições, mais aprendizado, mais tolerância.

De qualquer forma Kleyton, obrigado por tudo o que foste como amigo. Fico te devendo esta, a ser cobrada seja lá de que forma.....

A oração desta madrugada é sua, e sempre será! 

Até qualquer hora amigo......

Um comentário:

  1. Que texto lindo, Dé. Estou emocionada, sem palavras. Quanto carinho e respeito por uma migo querido que já se foi mas que vc ainda há de encontrar. Parabéns.

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